Francisco Alves Filho
Corre por aí um perigoso consenso. De tão repetida, a ideia praticamente ganhou ares de verdade científica: assim como os elefantes têm trombas e o mar é salgado, a classe política é integralmente formada por corruptos. O refrão é entoado de um lado a outro. Aparece nos textos editorializados dos jornais conservadores, repete-se nas progressistas redes sociais, é recitado pelas velhinhas nas filas dos bancos e pelos jovens nas reuniões estudantis. Basta aparecer um Demóstenes, um Perillo, um Agnelo ou qualquer outro acusado de corrupção com mandato no Legislativo ou no Executivo para reforçar a noção de que os partidos são território exclusivo de espertalhões. Segundo essa premissa, das duas uma: ou não existe qualquer ser humano digno de ser votado ou, se existe, acabará cedo ou tarde chafurdando na lama como os outros. O resultado é a descrença generalizada na política partidária, a convicção de que votar é um ato inútil, algo para os incautos eleitores avalizarem os salafrários.
Como se fosse roteiro de novela, de um lado estão os vilões (esses políticos malvados) e do outro os mocinhos (nós, a sociedade que paga os impostos, formada por cidadãos honestos, vítimas dessa corja). É fácil entender a revolta com a sequência interminável de escândalos, mas, para ser justo, nem mesmo nas tramas televisivas o maniqueísmo se mantém assim intocado. É impossível discordar: a enxurrada de negociatas e mutretas envolvendo a classe política é algo estarrecedor, pela quantidade, pela variedade de estratégias e pelos valores cada vez mais altos. É inaceitável, no entanto, a idéia de que a corrupção seja monopólio de apenas um grupo social. A conduta dos empresários, funcionários públicos, integrantes do Judiciário, síndicos, cartolas, militantes de ONGs, donos de meios de comunicação, jornalistas, cidadãos em geral, é assim tão diferente? Honestos e corruptos, tanto o Congresso quanto as ruas estão cheios deles.
Alguém poderá argumentar que os políticos lidam com dinheiro público, por isso o grau de corrupção seria mais grave. Inevitável, então, pensar nos empresários que os corrompem. Esses industriais, empreiteiros e comerciantes também decidem o destino dos recursos do Erário quando pagam propina em troca da vitória em uma licitação qualquer. Os sonegadores estão nessa mesma categoria, pois deixam de encher o Tesouro com o dinheiro que deveria ser usado para os serviços públicos. Outro argumento é o de que, por serem depositários da confiança dos eleitores, a classe política deve ser mais cobrada. De minha parte, não acho a corrupção sem voto menos corrupta.
Há até quem atribua ao presidente, aos governadores , aos deputados e vereadores a responsabilidade pelos desvios de comportamento do restante da sociedade. Lembro de uma entrevista feita em 2007, por ocasião do espancamento de uma doméstica em um ponto de ônibus na Barra da Tijuca. Os agressores eram jovens de classe média alta. Diante da atitude dos pais, mais preocupados em minimizar o vandalismo dos filhos que em desculpar-se com a moça, o psicanalista Luiz Alberto Py vaticinou, num telejornal da Globo: “Isso é causado pelos maus exemplos dos políticos. Se eles se protegem atrás da impunidade, nossa sociedade faz o mesmo”. Aí está o salvo-conduto desejado por qualquer um flagrado em delito: se os políticos fazem, porque não posso fazer? Todos estamos, então, absolvidos por antecipação – menos eles.
Admito: a impunidade dos políticos corruptos é algo revoltante. Assim como é revoltante a impunidade dos empreiteiros, dos juízes, dos cartolas... e vários outros figurões atolados na corrupção. Não é difícil concluir, então, que a impunidade, essa iguaria fina, é exclusividade dos poderosos – sejam eles políticos, juízes ou jogadores de futebol. Muitos destes impunes de outras categorias de poder, aliás, se escoram na ojeriza generalizada aos parlamentares e membros do Executivo para se juntar ao coro das vítimas. É um movimento clássico. Ladrões de casaca, aboletados em mansões e coberturas, costumam ser os primeiros a botar dinheiro nessas campanhas anti-polítca. Assim, a opinião pública se esquece deles. Nas últimas manifestações de repúdio à roubalheira, com vassouras verde-amarelas fincadas na areia da praia (trademark: Jânio Quadros), havia uma para cada congressista. Nenhuma sequer dedicada aos empresários, aos empreiteiros, aos corruptos sem mandato.
Essas palavras de ordem “moralizadoras” apareceram várias vezes no nascedouro de campanhas sujas perpetradas pelos ricaços conservadores contra seus opositores. No documentário “Operação Condor”, de Roberto Mader, uma das manifestantes anti-Allende o acusa de ser, entre outras coisas, corrupto. No Brasil também foi assim. Depois de derrubar Jango do poder, o regime militar abriu sindicância detalhada em 19 volumes para apurar "corrupção administrativa; aplicação indevida do dinheiro público; concessão de vantagens, favores e privilégios a apadrinhados”. Como era de se esperar, nada ficou provado contra Allende e Jango. Não que as bandalheiras verificadas atualmente na política sejam meras armações, como ocorreu na década de 60, ou que se deva encarar essa seqüência de escândalos como banalidade. O perigo é a generalização.
Essa é uma armadilha na qual se enredam muitas pessoas bem intencionadas e até políticos com desejo sincero de renovação. Alguns, nessa ânsia, dizem evitar a “política convencional”. Erram feio: esse lamaçal é heterodoxo, não tem nada de convencional. A tradicional arte da política é bem outra. Tenho certeza de haver ainda muitos políticos convencionais no Brasil, daqueles que estudam os assuntos de interesse público e propõem soluções, daqueles prontos a negociar em prol da sociedade.
O problema maior desse nefasto consenso é afastar da política partidária muita gente de bem, temerosa de ser taxada de oportunista pelo simples gesto de assinar a ficha de filiação em alguma legenda. Como resultado final, a cada eleição os rufiões dispõem de mais espaço para disputar os votos. Claro, existe ainda a militância no movimento estudantil, nas organizações da sociedade civil... Sabe-se, no entanto, que a democracia representativa continua em voga (não se viu no mundo real alternativa melhor) e as leis e ações do Estado são regidas por esses políticos. Com a desistência de muitos militantes interessados no bem público, os oportunistas, em última análise, aumentam sua influência no Legislativo e no Executivo. Os honestos ficam mais isolados.
Defendo os políticos. Eles não são nem mais nem menos corruptos que a média da sociedade (nada de achar que somos os campeões mundiais nesse item, vou tratar do tema em outro texto). Colocá-los como bode expiatório serve para tirar o foco de outros vilões, que sofreriam com a verdadeira e óbvia solução para o problema: aumentar a fiscalização sobre todos, aumentar a punição para todos. Duas providências simples, nunca debatidas a sério, que afetariam tanto malfeitos milionários dos empreiteiros, quanto barbeiragens comezinhas dos motoristas (grupo beneficiado, por exemplo, pela absurda lei que manda as autoridades avisarem onde estará localizado o radar para multar infratores. Talvez fale por si o fato de um dos maiores bastiões dessa campanha anti-corrupção ter sido, nos últimos tempos, um tal senador chamado Demóstenes. Apontava o dedo para os outros e desviava as atenções sobre seus atos, em parceria com o contraventor da moda. Na média, nós, brasileiros, somos bem melhores que Demóstenes. É preciso, no entanto, evitar agir como ele e assumir sem hipocrisia nossa responsabilidade.
Nas próximas eleições, quero distância de candidatos que se envergonham de sua condição de políticos. Da esquerda à direita, são cada vez mais frequentes os postulantes às câmaras municipais ou prefeituras a bater no peito para dizer: “Não sou político profissional”, como se isso fosse uma referência positiva. Pois bem: meu voto irá, com certeza, para um político profissional e convencional, daqueles que usam seu trabalho para melhorar a cidade, o estado e o país. Parlamentares capazes de trabalhar seriamente, sem esmorecer diante da generalização que os inclui nas roubalheiras das quais não participaram. Gente que, apesar de tantas distorções, faz manter acesa a esperança na verdadeira política.
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