Stela Guedes Caputo: “acho que não podemos ter Ensino Religioso como disciplina.”
Além de ser o espaço para partilhar conhecimentos, a escola deveria ser um ambiente para a discussão de valores e atitudes que possibilitassem a convivência entre as pessoas. Ou seja, não espera-se, em princípio, que o ambiente educacional seja marcado pelo preconceito e pela discriminação. Pelo menos, não deveria ser assim.
Mas, não foi a essa conclusão que a professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e jornalista Stela Guedes Caputo chegou, ao acompanhar, durante 20 anos, jovens e crianças adeptos da religião do Candomblé. Segundo ela, nas entrevistas que fez com estudantes candomblecistas, uma das constatações mais tristes foi a de que, para eles, de todos os espaços sociais onde a discriminação acontece, a escola é o pior de todos.
“Uma das professoras de Ensino Religioso que entrevistei, por exemplo, disse que tinha oito alunos do candomblé que entenderam, a partir de suas aulas, que estavam errados e se tornaram cristãos”, relembra Stela, ao contar uma das inúmeras histórias de discriminação que ouviu nas duas décadas de pesquisa que fundamentam o livro “Educação nos terreiros - e como a escola se relaciona com crianças de Candomblé”, publicado pela Editora Pallas.
A obra já foi recomendada pela Revista de História da Biblioteca Nacional, está na sala virtual da formação permanente para professores de História do Estado e foi indicada para ajudar a discussão sobre diversidade com ênfase nas questões da história e culturas africanas. Também foi lançada este ano em escolas, espaços culturais e em terreiros no Rio, na Bahia e em Minas, e tem lançamento previsto em Pernambuco e em vários outros estados.
Nesta entrevista, ela aborda não só o tema central de seu livro, a educação nos terreiros, como apresenta problemas e incoerências do ensino religioso, fala sobre outras formas de preconceito que existem no ambiente escolar, destaca de que forma o trabalho com a religião poderia contribuir com a formação educacional, entre outros temas.
FOLHA DIRIGIDA — Uma de suas conclusões é de que há muito preconceito nas escolas contra crianças e jovens desta religião. De que forma este preconceito se manifesta?
Stela G. Caputo - Primeiro é importante dizer que todos os tipos de preconceitos identificados foram relatados por crianças e jovens de terreiros que entrevistei durante minhas pesquisas. Também identifiquei discriminações nas entrevistas realizadas com professores e professoras da rede pública. Preconceitos e discriminações ocorrem de formas variadas. Um dos primeiros relatos que me chamou a atenção foi o de Ricardo Nery, quando ele tinha 4 anos, portanto, isso foi há 20 anos. Ricardo é ogan, ou seja, ele toca atabaques, entre outras funções. Na época o menino me disse que havia sido chamado de “filho do Diabo” por uma professora. Foi justamente esse relato que me motivou a tentar perceber como a escola se relaciona com crianças de terreiros. Jovens de terreiros amam e se orgulham de sua religião, mas, em geral, na escola, ocultam sua fé e até dizem que são católicos. Isso acontece porque preferem se tornar invisíveis para não serem identificados como candomblecistas e, assim, diminuírem as discriminações por que passam. Muitas fazem o santo e precisam raspar a cabeça. Esse é um momento de conflito dramático com a escola e crianças e jovens preferem dizer que estão com câncer ou pegaram piolho para justificar a raspagem. Há uma tática nova agora. Muitas dizem que passaram um produto para alisar o cabelo, o que acabou causando a queda, enfim, o que importa é perceber que elas sofrem porque são discriminadas e inventam formas de sobreviver ao preconceito.
O que pode nos dizer do relacionamento das crianças e jovens de famílias praticantes do candomblé com os estudantes de outras religiões?
Depois de tanto tempo de pesquisa eu tenho uma infinidades de dúvidas e algumas poucas certezas. Mas uma das coisas mais preciosas que aprendi sobre o candomblé é que esta é uma religião que não discrimina. Não discrimina diferentes orientações sexuais, não discrimina raças, classes, gêneros. Não discrimina outros credos. O candomblé também não é uma religião de conversão, não procura convencer ninguém a ser candomblecista. Não acha sua religião superior a de ninguém, apenas ama sua religião e vive ou tenta viver de acordo com ela. Então muitas vezes se ninguém perguntar, o candomblecista nem diz que é candomblecista. Primeiro por conta disso que já falei. Segundo por se tratar de uma religião de awos, ou seja, de segredos rituais (o que não pode ser confundido com silenciamento). O praticante não sai por aí falando de sua religião. Pensando na sua pergunta eu vejo não há problema para o candomblecista se relacionar com estudantes de qualquer religião. Não será ele ou ela candomblecista a criar problema para os outros. São os outros que criam problemas para os estudantes candomblecistas quando supõem que suas formas de entender e perceber o mundo são superiores, são melhores que as dos praticantes de candomblé.
Os alunos também sofrem preconceito por parte dos professores?
Um dado importante e muito triste levantado nas pesquisas é que alunos e alunas candomblecistas são unânimes ao afirmarem que de todos os espaços sociais onde a discriminação acontece, a escola é o pior deles. Uma das professoras de Ensino Religioso que entrevistei, por exemplo, disse que tinha oito alunos do candomblé que entenderam, a partir de suas aulas, que estavam errados e se tornaram cristãos. Muitas escolas rezam o Pai-Nosso na hora da entrada. Isso é uma forma de discriminar religiões para as quais essa oração não faz o menor sentido, por exemplo, para alunos judeus. Não se trata só do candomblé. Tauana dos Santos, a menina da capa do meu livro, afirma lamentavelmente que se dependesse das escolas em que estudou continuaria com vergonha não só do candomblé, religião que ama, mas também com vergonha de ser negra. Mas é claro que a escola não é “uma coisa só”. Existem muitos esforços de professoras e professores que defendem e praticam uma educação que garanta e respeite as diferenças. Ainda bem que existem, mas o problema é que geralmente são esforços individuais de um ou outro professor preocupado em combater os preconceitos enquanto o obscurantismo vem crescendo organizadamente.
Este livro é resultado de uma longa pesquisa. Pode nos falar sobre como realizou este estudo?
Em 1992 eu era repórter do jornal O Dia e recebi uma pauta para fazer um levantamento sobre o candomblé na Baixada Fluminense. Interessava ao meu editor uma matéria sobre a resistência dos terreiros. Cheguei ao Ile Omo Oya Legi, de Mãe Palmira de Iansã, em Mesquita, na Baixada Fluminense e a primeira pessoa que vi foi Ricardo Nery, com 4 anos, batendo um atabaque. A pauta da reportagem mudou e publicamos uma matéria revelando como crianças e adolescentes se preparam para a religião. Percebi que elas possuem um imenso conhecimento sobre o yorubá, uma língua africana, elas também conhecem mitos, danças, rituais, conhecem os usos diferenciados das folhas e ervas. Ao mesmo tempo, percebi que crianças e jovens respeitam muito os mais velhos no terreiro, mas são igualmente respeitadas por estes. Ou seja, o terreiro inverte a lógica adultocêntrica que opera na sociedade de maneira geral e particularmente nas escolas. A matéria agradou bastante às comunidades de terreiros, mas o bispo Macedo comprou as imagens que fizemos no Jornal O Dia (as fotos passam a pertencer às agências dos jornais) e publicou na Folha Universal uma matéria pejorativa sobre as mesmas crianças. Também publicou um livro com igual conteúdo discriminador. Esse episódio, somado aos depoimentos de Ricardo Nery, que foi chamado na escola de “filho do Diabo”, me fez desejar pesquisar na área da educação que é onde localizo um espaço fundamental para discutir as diferenças e as discriminações. Fiz então mestrado, doutorado na PUC e pós-doutorado na UERJ sempre pensando sobre essas questões. Esperei 20 anos para ver como um grupo de crianças crescia no candomblé. Fiz várias entrevistas, observei rituais, entrevistei professores, fotografei. Ao mesmo tempo, fui mergulhando em bibliografias sobre o candomblé de forma geral. Sobre crianças no candomblé não havia nada escrito, esse é o primeiro livro sobre a iniciação de crianças e o primeiro a tratar dessa religião na área da educação.
Nessas escolas, a senhora notou outras formas de preconceito? Contra negros, por exemplo?
É importante reforçar que estou sempre falando a partir dos depoimentos de crianças e jovens e são elas que associam o preconceito religioso ao preconceito racial. Todas as crianças negras, meninos ou meninas são enfáticos quando dizem que são discriminados conjuntamente, eles têm plena consciência disso. Há uma jovem que diz, por exemplo, que ouvia na escola: “é negra, só podia ser do candomblé!”. Aqui o candomblé e a raça são apontados como insultos e um associado ao outro. A abordagem que o pesquisador Antônio Sérgio Guimarães faz sobre insultos raciais, no livro “Classes, Raças e Democracia”, é importante. Ele diz que são atos, observações ou gestos que expressam opiniões negativas sobre uma pessoa ou grupo. Este autor pesquisou, de maio de 1997 a abril de 1998, as queixas registradas na Delegacia de Crimes Raciais de São Paulo. Nesse período, observou que em 82% dos casos, as vítimas fizeram questão de registrar os insultos verbais sofridos. Há registros de insultos como “fedido”, “nojento”, “sujo” e, também sobre a religião. O termo “macumbeiro” aparece registrado como insulto. Na escola existe a mesma lógica. Uma aluna negra ou aluno negro quando é insultado é chamado muitas vezes de “negro, sujo e macumbeiro”. Há vários relatos de pais de crianças que passaram a vida ouvindo “é negra, só pode ser ladra, cuidado!” São relatos que infelizmente revelam que não vivemos em uma democracia racial. Pelo contrário, o Brasil é um país racista e o racismo está presente na escola.
Muitas pessoas são contrárias ao Ensino Religioso porque consideram que a escola deve ser um espaço laico. Concorda com esta tese?
Concordo sim. Acho que a educação pública deve ser laica, mas, desde a chegada dos jesuítas, nossa escolarização foi marcada por objetivos de catequese e até hoje não temos uma educação de fato laica. A proclamação da República, em 1889, separa Estado e Igreja Católica, mas só a Constituição de 1891 garante o ensino laico nas escolas públicas. A atual Constituição, de 1988, não instituiu qualquer religião como oficial do Estado, mas, em seu artigo 210, garante a obrigatoriedade do Ensino Religioso, o que é uma contradição. É importante ressaltar que esse equívoco de confundir a fé privada com o espaço público não é exclusividade do Ensino Religioso, ele reforça isso, mas muitos professores e professoras de diversas disciplinas acham que a escola pública deve ser usada para conversão de alunos, o que é um absurdo imenso que deve ser combatido, proibido e discutido profundamente nos cursos de formação de professores.
A senhora acompanha a questão do Ensino Religioso nas escolas? Tem visto problemas?
Acompanho e tenho visto muitos problemas. No caso do Rio de Janeiro, por exemplo, em 2004, houve concurso público para professores de religião e 500 professores foram contratados, sendo 68,2% católicos, 26,31% evangélicos e 5,26% de outras religiões. É o que se chama de modalidade confessional. Na Coordenação de Ensino Religioso informam não há proselitismo, ou seja, não há catequeses e sim “valores”. Mas na prática não é o que acontece. Os depoimentos revelam que em muitas escolas se reza o Pai-Nosso. A Igreja Católica lançou uma coleção de livros didáticos católicos em 2007. Professores afirmam que selecionam o que há de comum entre católicos e evangélicos e planejam assim suas aulas, convertem alunos como já disse aqui. A Secretaria de Educação não realiza encontros periódicos para avaliar problemas de matemática, de história ou de química, por exemplo, e traçar projetos de solução. Mas faz encontros sistemáticos com os professores de religião e organiza, principalmente, a inserção da Campanha da Fraternidade de cada ano nas escolas públicas. Isso devia ser crime porque é evidente que fere a laicidade, que privilegia grupos hegemônicos, portanto, é evidente que é inconstitucional. Na Bahia, professores de qualquer disciplina completam carga horária com Ensino Religioso, enfim, há problemas por todos os lados. É por isso que defendo uma Proposta de Emenda Constitucional para que a obrigatoriedade do Ensino Religioso seja retirada da Constituição Federal.
Então a religião deve ser proibida na escola?
Acho que não podemos ter Ensino Religioso como disciplina. Também acho que o calendário escolar, os murais, os painéis não devem ser hegemonizados pela religião católica como, na verdade, são. Significa dizer que as diferentes religiões não podem entrar na escola? Não, não significa. Conheci um garotinho Wicca na passeata pela Liberdade Religiosa, no dia 16 de setembro. Eu nem sabia o que era isso e perguntei. É uma religião neopagã, iniciática, sacerdotal, mítica, politeísta, de culto dualista e orientação matrifocal. Praticam Sabás e Esbás. Que professor de Ensino Religioso estará capacitado a ensinar a história de todas as religiões? Isso não existe. Ainda que concordássemos com uma disciplina de História das Religiões, como alguns defendem, muitas seriam excluídas porque é impossível calcular a multiplicidade de significações humanas para a vida e a morte. Acho que esse garotinho Wicca pode entrar com o que o identifica. O menino judeu também. O católico, a evangélica, o candomblecista, a kardecista e todas as multiplicidades podem entrar na escola. Lidar com essa diferença é primeiro reconhecer que ela existe. Depois? É abraçá-la e dançar com ela, aprender e ensinar com ela. É ouvir do menino Wicca como foi seu fim de semana e pedir que ele explique o que é um Sabá. Pedir ao candomblecista que explique o que é um ebó. Para isso não precisamos de uma disciplina, mas precisamos entender que tudo isso são saberes e significações que penetram na escola, nos desenhos em cadernos. Na música que se canta baixinho e escondido. Na carteira que vira um atabaque em mãozinhas silenciosas que repetem um toque do terreiro. Ao invés de reprimir, que tal se pedirmos: “Ricardo, Patryck, João! Ensina esse toque para a turma. Diz para nós o que significa!” O professor de química pode fazer isso, todos podem.
Que contribuições para a formação educacional e humana de um estudante o trabalho com as religiões, no ambiente escolar, poderia trazer?
A opção religiosa, o modo como se percebe e significa o mundo é uma escolha íntima, singular. Nenhuma escola deve se intrometer nisso, a não ser garantindo a liberdade para que escolhas sejam feitas. Professores e professoras enfrentam muitos desafios no cotidiano das escolas. São baixos salários, plano de carreiras deficientes, precarização dos espaços escolares e da própria formação docente. Lidar com as diferenças na escola é mais um gigantesco desafio. E são múltiplas essas diferenças, inclusive a religiosa. A formação educacional e humana é uma coisa só. A educação só acontece entre seres humanos. É claro que todos os espaços religiosos ensinam, mas, como educadores, devemos perguntar o que se ensina? Se uma religião ensina a ser racista, homofóbico, machista e a discriminar outras religiões penso que esta religião está no campo oposto da educação libertária, igualitária e multicultural na qual acredito. Estou convencida de que ensinar a não ser racista, a não ser homofóbico, a não discriminar famílias constituídas pelas diversas orientações sexuais, a não ser machista é fundamental. Se uma atitude discriminadora acontece na sala de aula, discutir essa atitude é mais importante do que o conteúdo a ser dado. Se a atitude discriminadora foi causada por motivação religiosa podemos conversar porque uma religião ensina a discriminar. É essa discussão que colabora com a educação que respeita as diferenças. Nenhuma equação, fórmula, verbo ou oração subordinada é mais importante do que isso.
Como a senhora acha que seu livro ajuda nessa discussão?
Tenho recebido de todo Brasil muitas mensagens de crianças e jovens de candomblé dizendo que se reconhecem no livro. Muitos adultos se emocionam porque ali também enxergam sua história e só isso já me deixa extremamente feliz. Ao mesmo tempo, professores e professoras também escrevem dizendo poxa isso acontece na minha escola e me chamam para discutir e isso também em todo o Brasil. Eu não esperava tanta repercussão, mas queria poder contribuir e penso que isso vem acontecendo. Só gostaria de dizer que são as crianças e jovens que estão no livro, com suas histórias de vida, que estão causando esse movimento todo.
#DICA DE WILSON SANTANA
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