Para especialista, o professor alfabetizador precisa apostar alto na
capacidade de seus alunos
Ela é a mais respeitada especialista em alfabetização do país. Em sua
trajetória profissional, Telma Weisz viveu o conflito de ter trabalhado durante
anos numa perspectiva mais tradicional, até ter contato com as ideias da
psicogênese da língua escrita. "Aí fiquei furiosa comigo mesma",
revela a educadora. Desde então, mudou seu olhar sobre os alunos, percebeu que
não se pode subestimar a capacidade intelectual de nenhuma criança, aprofundou-se
como ninguém no assunto e, dona de uma generosidade sem igual, dedicou-se a
transformar a prática de milhares de professores alfabetizadores por meio do
principal curso de formação em Alfabetização do Brasil, o Profa. Hoje, ela
supervisiona a versão paulista do programa, o Ler e Escrever, da Secretaria
Estadual da Educação. Nesta entrevista a NOVA ESCOLA, Telma abusa de exemplos
cotidianos para mostrar equívocos, muitos deles cometidos no passado por ela
mesma, que ocorrem na árdua tarefa de ensinar a ler e escrever. E, o mais
importante, explica por que eles acontecem, com a autoridade de quem soube, por
meio do conhecimento científico, refletir sobre a própria prática para
melhorá-la.
NOVA ESCOLA: Ainda há professores que não
transmitem informações às crianças por pensar que elas aprendem sozinhas? Qual
é a origem dessa dificuldade?
Telma Weisz Na verdade, isso tem a ver com a própria
concepção de ensino. Antigamente, todos tinham a ideia de que ensinar era
transmitir informações. Nos últimos 30 anos, quando começamos a descobrir que
ensinar é criar condições e situações para a aprendizagem e quando os
professores ouviram falar, sem aprofundamento, que as crianças constroem seu
conhecimento, muitos acharam que bastava o contato com as letras e o material
escrito para que o conhecimento aparecesse naturalmente, por geração
espontânea.
Não sei se ainda há quem pense assim. Eu espero que não, pois é um equívoco.
O papel do professor é ser aquele que sabe mais dentro da classe e que valida a
informação que circula. Em uma sala, todos estão em atividade intelectual,
todos falam, todos elaboram ideias e constroem conhecimento. Não ao mesmo tempo
- e esse é outro equívoco -, mas todos têm a oportunidade de expressar o que
pensam. A validação deve acontecer, porque todos os saberes que estão sendo
construídos são provisórios, elaborados por meio de um processo permanente de
aproximação com o conhecimento objetivo.
A interpretação enviesada do construtivismo também tem a ver, em parte, com
o fato de que a teoria da psicogênese foi popularizada no Brasil por um
conjunto de vídeos de entrevistas com as crianças. O entrevistador, que no caso
era eu, buscava tornar visíveis as hipóteses que elas formulam quando estão
aprendendo a ler e a escrever. Como o objetivo era deixar que os professores
vissem-nas pensando em voz alta, a intervenção era pequena. O que foi mal
compreendido é que aquilo não era uma situação de ensino nem de pesquisa. Era
uma tentativa de ilustrar o que estava no livro [Psicogênese da Língua Escrita,
de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky] e que não era de fácil compreensão. Esses
mal-entendidos fizeram com que muitos tivessem dúvidas não só sobre informar ou
não, mas sobre o que informar. E essa é uma questão delicada porque não há um
guia de coisas permitidas ou proibidas. Depende das circunstâncias e daquilo
que as crianças pensam em cada momento.
Como essas dúvidas se revelam na prática?
Telma Por exemplo, se você tem um aluno que está escrevendo
uma letra para cada sílaba e ele pergunta "qual é o MI", você pode
dar duas respostas. A primeira é: "MI é o M e o I". E a segunda:
"O que você quer escrever?", ajudando-o a encontrar uma resposta que
caiba na estrutura teórica com a qual ele está trabalhando. Se o menino já está
escrevendo alfabeticamente, a situação é outra, mas também tem suas
características. Certa vez, um outro me perguntou "Como se escreve
lã?". E eu disse "L, A, til". Quando vi, ele havia escrito
"balãsa". Dei uma informação errada, porque não tive o cuidado de
perguntar "para escrever o quê?". Há uma quantidade enorme de
informações que cabe ao professor oferecer, mas é preciso ter condições e
critérios para saber quais estudantes podem aproveitá-las. Isso só se consegue
fazendo avaliação constante da classe.
Há muitos anos, em um trabalho de pesquisa, observei uma menina que estava
repetindo a 1ª série havia cinco anos. A professora, naquele dia, apresentava à
classe o alfabeto (para aquela aluna, pela primeira vez). A garota teve uma
crise descontrolada de choro e, quando se acalmou, disse "eu sempre saio
da escola no meio do ano porque não consigo aprender as letras. Mas eu não
sabia que eram tão poucas. Se eu soubesse, não teria ficado tanto tempo aqui
até aprender." É uma informação simples, mas se não é dita, como ela vai
saber? Outro exemplo: uma criança pergunta "cozinha é com S ou com
Z?" O que você faz? Diz a ela "pense para descobrir?" Não tem
como pensar para descobrir. Você tem duas alternativas: mandá-la ao dicionário,
o que, em determinadas circunstâncias, é uma perda de tempo, ou aproveitar a
situação para explicar que é com Z, mas que, muitas vezes, o mesmo som pode ser
com S, ainda que entre vogais. Assim, é introduzida uma série de informações
que nem todos talvez possam utilizar, dependendo das condições do grupo. Mas,
de qualquer maneira, se isso não vier do professor, de onde virá?
O que acontece quando não nos
colocamos na perspectiva do aluno?
Telma "Cegamos" o aluno. É porque somos
alfabetizados que ouvimos e vemos coisas que, para os que ainda não sabem ler e
escrever, não estão lá. Um exemplo simples: muitos professores estão
convencidos de que o branco entre as palavras é uma coisa que se pode escutar.
Isso só pode acontecer a uma pessoa cuja percepção da relação entre escrita e
leitura está de tal maneira organizada em cima da sua própria competência
leitora que nem passa por sua cabeça que a fala é um contínuo e que jamais as
crianças vão encontrar no falado os elementos que permitirão separar as
palavras. E é claro que, dessa perspectiva, ao vê-las escrevendo tudo grudado,
imagina-se que há uma disfunção, um problema. Não há. Trata-se de um momento
necessário do processo. É preciso aprender a escrever assim para depois pensar
na questão das separações.
Colocar-se no lugar do aprendiz é essencial para ensinar. Muitos falam em
"palavras", como se as crianças soubessem o que é isso. Mas só gente
alfabetizada, que já escreve e segmenta o texto, pode saber o que são palavras.
E, às vezes, mesmo quando já fazem isso, recusam a ideia de que os artigos sejam
palavras. Não estou dizendo para não usar a terminologia, mas é preciso ter
claro que o que se está nomeando não é exatamente o que as crianças pensam que
é. Certa vez, perguntei a uma menina o que era "palavra". Ela
respondeu: "É o que está escrito na Bíblia." E eu insisti: "Por
quê?". "Por que a Bíblia é a palavra de Deus". Imaginar que é
obvio escrevermos exatamente como falamos, na mesma ordem, só acontece se não
nos colocamos no lugar de quem está aprendendo. Porque, ao assumir essa perspectiva,
somos obrigados a olhar de outro jeito. Intuitivamente, ninguém é capaz de
fazer isso.
Só com pesquisa cientifica é possível compreender o outro que pensa
diferente de você. A vida inteira, vi meninos escreverem coisas que, para mim,
não eram escrita, não eram nada. Nunca parei para refletir sobre o que eles
estavam pensando. Até o dia em que li sobre a psicogênese. E aí fiquei furiosa
comigo mesma, porque já tinha visto aquilo tudo. Qualquer alfabetizador já viu
crianças escrevendo com uma letra para cada sílaba ou com menos letras. Na
verdade, não dávamos importância. Não olhávamos para isso como uma ação
inteligente delas. Sem a ajuda da ciência, não se pode recuperar uma visão que
já se teve, mas que foi apagada, numa espécie de esquecimento cognitivo.
Há muitos anos, quando trabalhei com professores indígenas no Acre, estava
explicando a eles as hipóteses sobre a escrita e dizendo que, no inicio, as
crianças pensam que, para escrever um pedaço do que se fala, basta um pedaço de
escrita, que para eles é a letra. Eles me olhavam com estranheza, pois essa
ideia de hipótese era muito estranha à cultura local. Até que um deles puxou
uma folha antiga de sua pasta. Ele se chamava Norberto, havia feito um desenho
e assinado NBT. Era recém-alfabetizado e ainda tinha o documento de suas
próprias hipóteses. Foi uma situação interessante ver um adulto recuperar esse
esquecimento. Nós não nos lembramos de quando não sabíamos calcular, escrever,
ler. Nós não temos a memória viva do que é ser alguém que tem de aprender, que
não sabe nada sobre determinada coisa. E os professores, como tais, só podem
recorrer ao conhecimento cientifico para recuperar isso. Porque, via bom senso
ou afetividade, não se chega a lugar algum.
Quais são os equívocos mais comuns na escolha das
intervenções para fazer a turma avançar nas hipóteses de escrita?
Telma Vejo duas versões sobre isso. Em uma delas, a mais
tradicional e frequente, mostra-se aos silábicos quais letras faltam,
imaginando que isso os ajuda a chegar a uma hipótese mais avançada. Há uma dificuldade
enorme de aceitar e deixar no caderno uma escrita que não esteja
ortograficamente correta. "O que os pais vão pensar?", "o aluno
achará que está certo", "vai fixar o erro". Na verdade, falta
compreensão da diferença entre trabalhar o processo de aprendizagem e trabalhar
sobre o produto que a criança está realizando. Toda a tradição de correção com
caneta vermelha e de cópia dos erros vem daí - existe o não saber, o saber
errado e o saber certo. E é claro que isso corresponde a uma concepção de aprendizagem,
para a qual o ensino, por sua vez, cuida de evitar que se fixem na memória
ideias erradas. Na visão construtivista, com uma abordagem psicogenética da
alfabetização, fica claro que aquela escrita, errada segundo os padrões
convencionais, faz parte de um processo do aluno. E que, naquele momento, é
preciso estimular o máximo possível a reflexão sobre o que se escreve. É
possível e necessário subsidiá-lo para ajudá-lo, o que é muito diferente de dar
informações para obter um produto correto.
A segunda versão é uma leitura parcialmente equivocada do que chamamos de
conflito cognitivo. Ou seja, o que faz um menino, que está lá, bem satisfeito
da vida, escrevendo uma letra para cada sílaba e conseguindo se virar assim,
abandonar essa hipótese que, do ponto de vista teórico, é tão elegante? Como é
que ele avança? Além da hipótese de que, para cada vez que abrimos a boca,
usamos uma letra, ele tem outras, como a de que não pode escrever uma mesma
letra repetida, escrever com poucas letras e, de forma alguma, escrever com uma
letra só. Mas, para alguns, duas letras também é muito pouco. A média
estatística da exigência é em torno de três letras. O que acontece com uma
língua como o português, com uma quantidade enorme de palavras dissílabas? Toda
vez que a criança escreve um dissílabo, tem um problema, pois precisa colocar
alguma coisa para não cometer um "sacrilégio". Essa contradição entre
os esquemas explicativos que ela tem para a leitura e a escrita é que dá origem
e espaço ao que chamamos de conflito cognitivo.
A partir dessa explicação, os professores fazem uma assimilação de que é
preciso produzir situações conflitivas o tempo todo. Mas o conflito ou é do
aprendiz ou vira uma conversa sem nexo para ele. Uma das atitudes equivocadas
mais clássicas nessa linha é mandar contar os pedaços de uma palavra falada.
Por exemplo, para "borracha", bater três palmas, uma em cada sílaba.
Então, o professor escreve a palavra, pergunta quantas letras tem e diz:
"Você pensa que abrimos a boca três vezes e que é preciso colocar três
letras, mas eu estou mostrando que não é, e que borracha, no papel, tem oito
letras". Dependendo de em que nível os meninos estejam, isso não faz o
menor sentido. E certamente não fará quando estão colocando três letras. Pode
ser em uma transição, mas aí não é necessário ficar contando quantas vezes a
boca abre ou quantas letras a palavra tem. A própria criança começa a batalhar
para colocar as letras. Ou você pode - e para isso é preciso conhecê-la
intelectualmente - dizer: "Você sabe fazer melhor do que isso. Pense mais
um pouco".
É comum a ideia de que, na
leitura de textos memorizados, o importante é guardar a grafia das palavras.
Isso está certo?
Telma Não está clara, para quem pensa dessa forma, a
importância do trabalho com textos memorizados. Em primeiro lugar, não é
qualquer texto que pode ser utilizado. Deve ser um texto estável, não o segundo
parágrafo da história da Bela Adormecida. Existe um vasto repertório infantil,
naturalmente memorizado. São versinhos, parlendas e trava-línguas, usadas em
brincadeiras de roda e jogos verbais, que as crianças já sabem ou podem
aprender oralmente na escola, usados em dois tipos de atividades muito
interessantes. Uma é juntar duas delas (com níveis próximos de conhecimento, de
forma que uma possa contribuir com a outra) para produzir uma escrita. Por
exemplo, "a galinha do vizinho bota ovo amarelinho". Como as duas
sabem de memória, tudo o que têm de intercambiar é que letras colocar e onde.
Se estivessem redigindo um texto inventado, não teriam um problema comum para
resolver. Mas sendo um texto estável, tomam decisões em função desse
conhecimento prévio.
Outro tipo de trabalho é pedir que acompanhem, sabendo o que está escrito em
cada verso, a leitura que alguém faz. Elas sabem que, na primeira linha, está
escrito "a galinha do vizinho" e, na segunda, "bota ovo
amarelinho", porque você informou. O que está por trás disso? O fato de
que ninguém nasce sabendo que se escreve tudo aquilo que se fala, na ordem em
que se fala, sem omitir nada. No início, imagina-se que só se escreve os
substantivos. Se você tem "a galinha do vizinho", pensam que está
escrito "galinha" e "vizinho". Para "bota ovo
amarelinho", os mais avançados podem achar que está escrito "bota",
"ovo" e "amarelinho", mas não necessariamente nessa ordem.
É interessante pedir para localizar e ler pedaços, que são as
"palavras" (mas, se você disser "palavras", eles procurarão
as letras). Você pode perguntar onde está escrito "vizinho". Eles
acompanharão o texto e começarão a localizar as partes do escrito e
relacioná-las ao falado.
Esse tipo de atividade tem um papel extremamente importante e não aprendemos
isso com a psicolinguística ou com a didática. Mas com a história da leitura,
com investigações sobre como as populações antigas se alfabetizaram.
Descobriu-se que, nos países nórdicos, por exemplo, toda a população era
alfabetizada antes de haver escolas. Protestantes de orientação calvinista,
eles tinham uma prática sistemática de acompanhar nos textos o que se falava
nos cultos. Todos eram incorporados a esse universo em que a palavra escrita
nos textos religiosos era tratada como uma coisa básica, essencial. As pessoas
acompanhavam e decoravam para se aproximar desse objeto sagrado que era a
escrita. Isso também aconteceu nas escolas religiosas judaicas e ocorre nas
escolas religiosas muçulmanas - mas nessas duas instituições o aprendizado é
apenas para os homens. Essa é a origem do trabalho que fazemos com textos
memorizados. Já a memorização da forma escrita produz um efeito contrário. Sempre
que os professores insistem na memorização da forma, os alunos, no esforço de
lembrar como as palavras são escritas, produzem uma escrita caótica, e não a
que produziriam se estivessem pensando em como se escreve.
O professor ainda acredita que, ao pedir que a
criança acompanhe a leitura com o dedo, é capaz de fazê-la ler, sem observar se
ela faz a relação do escrito com o falado?
Telma Sobre esse assunto, eu gostaria de fazer um mea culpa
público. Certa vez, em um vídeo, depois de dizer muitas vezes "ler
apontando com o dedinho", eu disse "ler com o dedinho". Muita
gente repete isso, mas é uma bobagem. Ler acompanhando com o dedo serve, por
exemplo, para aproveitar as possibilidades de uma atividade em que se leia um
texto memorizado em público. Para um sarau de poesia, cada um tem um poema,
leva para casa, pede ajuda à família, estuda, decora, aponta e tenta
acompanhar, pois terá de se apresentar publicamente. Essa situação de
focalização e de achar as partes do texto para se apresentar de forma adequada
ajuda a descobrir em quem pedaço está escrito o quê. Agora, passar o dedo
embaixo, em si, não é nada. A leitura da escrita não entra pela pele. Faz
sentido apenas se houver reflexão sobre a grafia das palavras e se quem está
lendo tenta ajustar aquilo que fala ao que está escrito. A forma adequada de
organizar esse tipo de atividade é, por exemplo, todos cantarem uma canção
juntos. De repente, o professor bate palma, pára numa determinada palavra e
anda pela sala para ver se os dedos estão onde deveriam estar. Se não
estiverem, ajuda a entender a posição certa. Se simplesmente diz
"acompanhe com o dedo" e vai embora, não acontece nada. É preciso
construir uma situação de aprendizagem e não ficar alisando papel. Para isso, é
preciso estudar, buscar uma compreensão teórica que vai muito além de apenas
saber identificar uma hipótese de escrita.
O que leva o professor a passar questionários em
vez de promover comentários sobre as histórias lidas - como fazemos com amigos,
quando lemos um livro?
Telma Ou pedir que façam um desenho, o que é ainda pior...
O intercâmbio de ideias a partir de uma situação de leitura é algo que se faz
apenas quando se tem uma experiência significativa e intensa como leitor.
Quando lemos com ou para as crianças, tentamos constituir bons comportamentos
leitores. Mas, para que você funcione como um modelo desses comportamentos,
também precisa ser um leitor. Essa prática de ler uma história e depois pedir
um desenho não tem nada a ver com a ideia de que o que se lê pode ser aprofundado,
explorado, re-elaborado e compartilhado. Quando se tem a concepção de que a
leitura não é simplesmente fazer barulho com a boca diante das marcas gráficas,
sabe-se que ela produz em mim um impacto diferente do que em você, e que eu
posso ter observado mais um aspecto do que outro e que podemos nos interessar
por coisas diferentes. Esse espaço de intercâmbio é um espaço de trocas. Eu
tenho visto perguntarem "de que pedaço você gostou mais?", "E
você?". Assim, podam o intercâmbio real, que seria "quem achou uma
coisa interessante que gostaria de contar aos amigos?". Se não souberem
como fazer isso, você dá o modelo: "Lendo esse texto, eu pensei nisso, me
lembrei daquilo, achei muito interessante a forma com que o autor escreveu,
parecia que ele queria dizer uma coisa, mas queria dizer outra". É
interessante fazer perguntas sobre aspectos de uma história que talvez poucos
tenham entendido.
Há uma escritora que escreve em espanhol e tem uma série de livros sobre uma
menina com uma amiga igualzinha a ela, mas que é gigante e aparece sempre que a
garota precisa se proteger dos adultos. Só que isso nunca é dito
explicitamente. Se você pergunta "quem é essa amiga grande?",
"ela existe de verdade?", uma discussão louca surge na classe. Porque
a personagem é, na verdade, uma representação do desejo da menina que se salva
das maldades dos adultos. Mas as crianças não têm isso claro, apenas uma vaga
intuição. Também é interessante perguntar "quem estava contando essa
história? A personagem? A mãe dela?". Em geral, respondem que "é a
escritora". E você pode questionar "mas aqui diz ‘eu não gosto que me
penteiem os cabelos porque arranca e dói’. A escritora disse isso?"
Aparece, então, a ideia do narrador, que, para as crianças, é completamente
misturada à do escritor.
O professor já compreendeu a
importância dos livros na alfabetização. Mas ele oferece variedade de materiais
de leitura?
Telma A variedade dos gêneros ultrapassa a ideia dos
livros. Só no jornal e nas revistas há uma variedade enorme de gêneros. Se o
professor não entende isso, usa esses portadores para recortar letras. Se
entende, aprende como explorar os gêneros que há dentro deles. Os livros
infantis, em geral, não têm uma grande variedade de gêneros. Têm, eu diria,
subgêneros. São todos livros de ficção, mas alguns falam de mistério, outros de
assombração ou de fadas. Mas acho que o problema é anterior: o professor tem de
ler para si mesmo, para selecionar o texto, com critérios, antes de levá-lo
para as crianças.
Eu acompanhei uma classe de alfabetização em que todos estavam envolvidos
com os livros de histórias, menos um menino. Quando se falava em leitura e
escrita, ele saía de perto e ia fazer outra coisa. Aparentemente, não tinha
interesse. Até o dia em que chegou uma enciclopédia de dinossauros. Nesse dia,
o menino ficou absolutamente fascinado, agarrou a enciclopédia. Ele não tinha
alma de ficcionista, ele tinha alma de cientista. Precisamos reconhecer essas
diferenças. Ele não tinha vontade de aprender a ler para ler sozinho as
histórias infantis. Mas ele tinha muita vontade de aprender a ler para
classificar os dinossauros, saber de que época eram e o que faziam. Aprendeu a
ler em dias. É uma mudança de gênero, mas foi também uma mudança de mundo para
o garoto.
Variar os gêneros é importante, mas não é uma ideia mecânica. Quando
introduzimos um gênero novo, é preciso ter um sentido para isso. Para ler
poemas, tenho um foco, se vou ler histórias, tenho outro. O que os diferentes
gêneros permitem é abrir o leque das possibilidades de leitura e oferecer o
discurso escrito em suas diversas formas. Porque, na verdade, quando as
crianças ouvem o adulto ler, não aprendem só o enredo, mas também sua
linguagem, que não é igual a dos outros. A variedade tem de ser selecionada em
função daquilo que a turma pode aprender, das diferenciações que os alunos já
têm condições de fazer e que você se sente em condições de oferecer.
Por que ainda é pequeno o acesso a materiais que
favoreceriam, na produção de um texto, a busca de informações em diversas
fontes?
Telma Há um medo mortal de trabalhar verdadeiramente com
jornais porque se pensa que é um texto adulto. Isso não é verdade. Certa vez,
vi uma professora fazer um trabalho muito interessante. Os meninos tinham de
assistir o noticiário da TV e, no dia seguinte, ela levava o jornal impresso
para a sala, para que encontrassem as informações sobre os fatos do dia
anterior. Ler os títulos, o subtítulo da reportagem, uma parte inicial do texto
é algo muito possível de fazer, especialmente quando se tem sensibilidade para
escolher o quê. Você não vai, por exemplo, propor a leitura de uma reportagem
sobre uma chacina. Mas pode ler sobre quem jogou no domingo, quem ganhou o
campeonato ou a corrida. Quando alguém relata algo que viu, você pode perguntar
se a turma deseja escutar a história contada no jornal impresso, mais
detalhada. Eu sou uma defensora convicta da presença do jornal na sala de aula
porque os fatos são a fonte da história. Nele, lemos sobre acontecimentos de
países distantes. Com um mapa múndi na classe você aponta, por exemplo, onde
ocorreu uma avalanche e aborda questões como o que é isso, por que acontece.
Esse trabalho é fascinante.
Mas é preciso ter a inteligência das crianças em alta conta. Quando se
espera mais, elas devolvem mais. Quando se espera pouco, elas devolvem um
pouquinho. O fato de trabalhar no limiar superior faz com que avancem muito
mais do que quando se pensa "elas não vão entender". É claro que
sozinhas elas não entendem. Tudo isso vale para enciclopédias, jornais, textos
de ficção, revistas. Mas é preciso fazer uma aposta alta. Não uma aposta cega,
sem olhar se a turma está acompanhando. E, sim, a mais alta possível, ajustada
àquilo que as crianças mostram que são capazes de pensar e fazer.
O professor encontra dificuldades em dar atividades
diferenciadas para os que já estão alfabéticos e também precisam avançar? Como
agir nesses casos?
Telma Isso é o mais fácil. Os já alfabéticos podem ler,
escrever, produzir textos, ser envolvidos em projetos mais complexos. Estes não
são o problema. O problema são os que ainda não compreenderam o sistema. Às
vezes, há alfabéticos que não são leitores. Nesse caso, é preciso construir
situações que ajudem a desembaraçar a leitura, que não é algo que vem sozinho.
Não é porque uma criança colocou todas as letras que ela já sai lendo. Poucas
fazem isso. A maioria precisa construir uma prática de leitura para se soltar.
Tenho uma experiência recente com uma que estava escrevendo silabicamente com
valor sonoro. Quando ela já sabia todas as letras, foi possível pensar em
trabalhar questões como "essa letra serve para escrever esse som, mas é só
essa? Tem mais? Você poderia colocar outra no lugar?" Então, ela avançou
rapidamente para uma escrita alfabética, cheia de erros de ortografia, mas
alfabética. Mas dizia "eu não sei nada porque escrevo, mas não sei ler. Eu
escrevo nessa letra e tudo o que eu vejo está escrito numa letra que eu não
conheço". Então, fiz uma tira de correspondência, com as letras de forma e
de imprensa. Todas as vezes que não conseguia reconhecer uma letra, o menino
via na tira. Mas isso empacava a leitura. Quando ele terminava a segunda
palavra, já não sabia mais sobre o que era o texto. Passei a propor que lesse
desse jeito e, depois de destrinchar todo o texto, voltasse a estudá-lo para ler
rápido, pois só se entende o que se lê quando se lê rápido. Sozinho, ele se
treinou, voltou e disse: "Estou lendo tudo". E estava mesmo. Porque,
na verdade, ele não tinha se soltado da ideia de que era necessário ler todas
as letras. Na medida em que pedi para que avançasse além dessa leitura letra
por letra, ele teve de usar as estratégias de leitura. Isso fez com que
ganhasse velocidade e compreensão. Conforme passou a compreender o que lia, a
vontade de ler cresceu e a leitura melhorou. Esse é um ciclo virtuoso.
Ainda persiste a ideia de que
as crianças só podem ter contato com histórias curtinhas, nunca lidas em
capítulos?
Telma Essa mania de que tudo tem de ser pequenininho é uma
deturpação da concepção de criança e, principalmente, um desrespeito enorme.
Porque ela senta na frente da TV, vê uma novela em 180 capítulos, lembra de
todos os personagens, quem casou com quem, quem brigou com quem e o que vestia
em tal dia. As crianças não têm problemas de memória, quem tem problemas de
memória somos nós. Elas têm tudo fresquinho na cabeça. Minha experiência
pessoal é a de escolher livros pela grossura, ao contrário do que alguns fazem.
Eu sempre escolho os livros mais grossos porque, se a história for boa, não
quero que ela acabe! Esse lugar do leitor que tem prazer na leitura é o que o
professor teria de encarnar. Para elas, uma história pequena é pobre e chata. É
claro que histórias grandes podem ser pobres e chatas. Mas elas adoram ouvir
uma história grande em capítulos, contados um por dia e, no fim da leitura:
"tchan tchan tchan tchan, agora aguardem o capitulo de amanhã! Quem que
acha que elas não gostam nunca experimentou. Elas são muito mais inteligentes
do que os adultos porque, nesse momento da vida, tudo está para ser aprendido e
a disponibilidade para a aprendizagem é enorme. Quando perdem isso é porque os
adultos destruíram. O fracasso reiterado mata essa disponibilidade.
Como deve ser o trabalho do 3º ano em diante no
que se refere ao aprimoramento da leitura e da escrita?
Telma Você já disse a palavra: aprimoramento. Em primeiro
lugar, ninguém deveria chegar ao final da segunda série sem compreender o
sistema de escrita e sem ler. Daí pra frente, todo o trabalho é de estabelecer
objetivos cada vez mais complexos para a mesma coisa, que é ler e escrever. O
nome do conteúdo não muda e, sim, o que está lá dentro. O que acontece é que
muitos imaginam que, quando se é capaz de colocar todas as letras e ler alguma
coisa, ainda que silabando, está encerrada a aprendizagem da leitura e da
escrita. Uma prova de que isso não é verdade é que os meus alunos na
pós-graduação estão aprendendo a ler textos acadêmicos, porque infelizmente as
faculdades onde estudaram, em vez de deixá-los ler textos acadêmicos adequados
à competência deles, criam as apostilas, simplificando o conteúdo, no pior
sentido da palavra. Isso os impediu de construir a capacidade de ler textos de
certo grau de complexidade, de um determinado gênero.
Aprende-se a ler e a escrever ao longo da vida toda. Não basta ser
alfabético e ser capaz de ler um outdoor para ser alfabetizado. Quando
entendemos isso, ajudamos os meninos a se aproximar de textos cada vez mais
complexos. Esse trabalho os transforma em leitores cada vez melhores e de uma
gama mais ampla de gêneros. E aprender por meio dos textos é condição para
estudar os outros conteúdos na escola. Para quem não sabe aprender a partir de
um texto escrito, o destino depois da quinta série é o fracasso.