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sábado, 22 de dezembro de 2012

Entrevista com Telma Weisz sobre alfabetização inicial



Para especialista, o professor alfabetizador precisa apostar alto na capacidade de seus alunos

Ela é a mais respeitada especialista em alfabetização do país. Em sua trajetória profissional, Telma Weisz viveu o conflito de ter trabalhado durante anos numa perspectiva mais tradicional, até ter contato com as ideias da psicogênese da língua escrita. "Aí fiquei furiosa comigo mesma", revela a educadora. Desde então, mudou seu olhar sobre os alunos, percebeu que não se pode subestimar a capacidade intelectual de nenhuma criança, aprofundou-se como ninguém no assunto e, dona de uma generosidade sem igual, dedicou-se a transformar a prática de milhares de professores alfabetizadores por meio do principal curso de formação em Alfabetização do Brasil, o Profa. Hoje, ela supervisiona a versão paulista do programa, o Ler e Escrever, da Secretaria Estadual da Educação. Nesta entrevista a NOVA ESCOLA, Telma abusa de exemplos cotidianos para mostrar equívocos, muitos deles cometidos no passado por ela mesma, que ocorrem na árdua tarefa de ensinar a ler e escrever. E, o mais importante, explica por que eles acontecem, com a autoridade de quem soube, por meio do conhecimento científico, refletir sobre a própria prática para melhorá-la.

NOVA ESCOLA: Ainda há professores que não transmitem informações às crianças por pensar que elas aprendem sozinhas? Qual é a origem dessa dificuldade?
Telma Weisz  Na verdade, isso tem a ver com a própria concepção de ensino. Antigamente, todos tinham a ideia de que ensinar era transmitir informações. Nos últimos 30 anos, quando começamos a descobrir que ensinar é criar condições e situações para a aprendizagem e quando os professores ouviram falar, sem aprofundamento, que as crianças constroem seu conhecimento, muitos acharam que bastava o contato com as letras e o material escrito para que o conhecimento aparecesse naturalmente, por geração espontânea. 
Não sei se ainda há quem pense assim. Eu espero que não, pois é um equívoco. O papel do professor é ser aquele que sabe mais dentro da classe e que valida a informação que circula. Em uma sala, todos estão em atividade intelectual, todos falam, todos elaboram ideias e constroem conhecimento. Não ao mesmo tempo - e esse é outro equívoco -, mas todos têm a oportunidade de expressar o que pensam. A validação deve acontecer, porque todos os saberes que estão sendo construídos são provisórios, elaborados por meio de um processo permanente de aproximação com o conhecimento objetivo.

A interpretação enviesada do construtivismo também tem a ver, em parte, com o fato de que a teoria da psicogênese foi popularizada no Brasil por um conjunto de vídeos de entrevistas com as crianças.                 O entrevistador, que no caso era eu, buscava tornar visíveis as hipóteses que elas formulam quando estão aprendendo a ler e a escrever. Como o objetivo era deixar que os professores vissem-nas pensando em voz alta, a intervenção era pequena. O que foi mal compreendido é que aquilo não era uma situação de ensino nem de pesquisa. Era uma tentativa de ilustrar o que estava no livro [Psicogênese da Língua Escrita, de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky] e que não era de fácil compreensão. Esses mal-entendidos fizeram com que muitos tivessem dúvidas não só sobre informar ou não, mas sobre o que informar. E essa é uma questão delicada porque não há um guia de coisas permitidas ou proibidas. Depende das circunstâncias e daquilo que as crianças pensam em cada momento. 

Como essas dúvidas se revelam na prática?

Telma Por exemplo, se você tem um aluno que está escrevendo uma letra para cada sílaba e ele pergunta "qual é o MI", você pode dar duas respostas. A primeira é: "MI é o M e o I". E a segunda: "O que você quer escrever?", ajudando-o a encontrar uma resposta que caiba na estrutura teórica com a qual ele está trabalhando. Se o menino já está escrevendo alfabeticamente, a situação é outra, mas também tem suas características. Certa vez, um outro me perguntou "Como se escreve lã?". E eu disse "L, A, til". Quando vi, ele havia escrito "balãsa". Dei uma informação errada, porque não tive o cuidado de perguntar "para escrever o quê?". Há uma quantidade enorme de informações que cabe ao professor oferecer, mas é preciso ter condições e critérios para saber quais estudantes podem aproveitá-las. Isso só se consegue fazendo avaliação constante da classe.
Há muitos anos, em um trabalho de pesquisa, observei uma menina que estava repetindo a 1ª série havia cinco anos. A professora, naquele dia, apresentava à classe o alfabeto (para aquela aluna, pela primeira vez). A garota teve uma crise descontrolada de choro e, quando se acalmou, disse "eu sempre saio da escola no meio do ano porque não consigo aprender as letras. Mas eu não sabia que eram tão poucas. Se eu soubesse, não teria ficado tanto tempo aqui até aprender." É uma informação simples, mas se não é dita, como ela vai saber? Outro exemplo: uma criança pergunta "cozinha é com S ou com Z?" O que você faz? Diz a ela "pense para descobrir?" Não tem como pensar para descobrir. Você tem duas alternativas: mandá-la ao dicionário, o que, em determinadas circunstâncias, é uma perda de tempo, ou aproveitar a situação para explicar que é com Z, mas que, muitas vezes, o mesmo som pode ser com S, ainda que entre vogais. Assim, é introduzida uma série de informações que nem todos talvez possam utilizar, dependendo das condições do grupo. Mas, de qualquer maneira, se isso não vier do professor, de onde virá?

O que acontece quando não nos colocamos na perspectiva do aluno?
Telma "Cegamos" o aluno. É porque somos alfabetizados que ouvimos e vemos coisas que, para os que ainda não sabem ler e escrever, não estão lá. Um exemplo simples: muitos professores estão convencidos de que o branco entre as palavras é uma coisa que se pode escutar. Isso só pode acontecer a uma pessoa cuja percepção da relação entre escrita e leitura está de tal maneira organizada em cima da sua própria competência leitora que nem passa por sua cabeça que a fala é um contínuo e que jamais as crianças vão encontrar no falado os elementos que permitirão separar as palavras. E é claro que, dessa perspectiva, ao vê-las escrevendo tudo grudado, imagina-se que há uma disfunção, um problema. Não há. Trata-se de um momento necessário do processo. É preciso aprender a escrever assim para depois pensar na questão das separações.
Colocar-se no lugar do aprendiz é essencial para ensinar. Muitos falam em "palavras", como se as crianças soubessem o que é isso. Mas só gente alfabetizada, que já escreve e segmenta o texto, pode saber o que são palavras. E, às vezes, mesmo quando já fazem isso, recusam a ideia de que os artigos sejam palavras. Não estou dizendo para não usar a terminologia, mas é preciso ter claro que o que se está nomeando não é exatamente o que as crianças pensam que é. Certa vez, perguntei a uma menina o que era "palavra". Ela respondeu: "É o que está escrito na Bíblia." E eu insisti: "Por quê?". "Por que a Bíblia é a palavra de Deus". Imaginar que é obvio escrevermos exatamente como falamos, na mesma ordem, só acontece se não nos colocamos no lugar de quem está aprendendo. Porque, ao assumir essa perspectiva, somos obrigados a olhar de outro jeito. Intuitivamente, ninguém é capaz de fazer isso.
Só com pesquisa cientifica é possível compreender o outro que pensa diferente de você. A vida inteira, vi meninos escreverem coisas que, para mim, não eram escrita, não eram nada. Nunca parei para refletir sobre o que eles estavam pensando. Até o dia em que li sobre a psicogênese. E aí fiquei furiosa comigo mesma, porque já tinha visto aquilo tudo. Qualquer alfabetizador já viu crianças escrevendo com uma letra para cada sílaba ou com menos letras. Na verdade, não dávamos importância. Não olhávamos para isso como uma ação inteligente delas. Sem a ajuda da ciência, não se pode recuperar uma visão que já se teve, mas que foi apagada, numa espécie de esquecimento cognitivo.

Há muitos anos, quando trabalhei com professores indígenas no Acre, estava explicando a eles as hipóteses sobre a escrita e dizendo que, no inicio, as crianças pensam que, para escrever um pedaço do que se fala, basta um pedaço de escrita, que para eles é a letra. Eles me olhavam com estranheza, pois essa ideia de hipótese era muito estranha à cultura local. Até que um deles puxou uma folha antiga de sua pasta. Ele se chamava Norberto, havia feito um desenho e assinado NBT. Era recém-alfabetizado e ainda tinha o documento de suas próprias hipóteses. Foi uma situação interessante ver um adulto recuperar esse esquecimento. Nós não nos lembramos de quando não sabíamos calcular, escrever, ler. Nós não temos a memória viva do que é ser alguém que tem de aprender, que não sabe nada sobre determinada coisa. E os professores, como tais, só podem recorrer ao conhecimento cientifico para recuperar isso. Porque, via bom senso ou afetividade, não se chega a lugar algum. 

Quais são os equívocos mais comuns na escolha das intervenções para fazer a turma avançar nas hipóteses de escrita?

Telma Vejo duas versões sobre isso. Em uma delas, a mais tradicional e frequente, mostra-se aos silábicos quais letras faltam, imaginando que isso os ajuda a chegar a uma hipótese mais avançada. Há uma dificuldade enorme de aceitar e deixar no caderno uma escrita que não esteja ortograficamente correta. "O que os pais vão pensar?", "o aluno achará que está certo", "vai fixar o erro". Na verdade, falta compreensão da diferença entre trabalhar o processo de aprendizagem e trabalhar sobre o produto que a criança está realizando. Toda a tradição de correção com caneta vermelha e de cópia dos erros vem daí - existe o não saber, o saber errado e o saber certo. E é claro que isso corresponde a uma concepção de aprendizagem, para a qual o ensino, por sua vez, cuida de evitar que se fixem na memória ideias erradas. Na visão construtivista, com uma abordagem psicogenética da alfabetização, fica claro que aquela escrita, errada segundo os padrões convencionais, faz parte de um processo do aluno. E que, naquele momento, é preciso estimular o máximo possível a reflexão sobre o que se escreve. É possível e necessário subsidiá-lo para ajudá-lo, o que é muito diferente de dar informações para obter um produto correto.
A segunda versão é uma leitura parcialmente equivocada do que chamamos de conflito cognitivo. Ou seja, o que faz um menino, que está lá, bem satisfeito da vida, escrevendo uma letra para cada sílaba e conseguindo se virar assim, abandonar essa hipótese que, do ponto de vista teórico, é tão elegante? Como é que ele avança? Além da hipótese de que, para cada vez que abrimos a boca, usamos uma letra, ele tem outras, como a de que não pode escrever uma mesma letra repetida, escrever com poucas letras e, de forma alguma, escrever com uma letra só. Mas, para alguns, duas letras também é muito pouco. A média estatística da exigência é em torno de três letras. O que acontece com uma língua como o português, com uma quantidade enorme de palavras dissílabas? Toda vez que a criança escreve um dissílabo, tem um problema, pois precisa colocar alguma coisa para não cometer um "sacrilégio". Essa contradição entre os esquemas explicativos que ela tem para a leitura e a escrita é que dá origem e espaço ao que chamamos de conflito cognitivo.
A partir dessa explicação, os professores fazem uma assimilação de que é preciso produzir situações conflitivas o tempo todo. Mas o conflito ou é do aprendiz ou vira uma conversa sem nexo para ele. Uma das atitudes equivocadas mais clássicas nessa linha é mandar contar os pedaços de uma palavra falada. Por exemplo, para "borracha", bater três palmas, uma em cada sílaba. Então, o professor escreve a palavra, pergunta quantas letras tem e diz: "Você pensa que abrimos a boca três vezes e que é preciso colocar três letras, mas eu estou mostrando que não é, e que borracha, no papel, tem oito letras". Dependendo de em que nível os meninos estejam, isso não faz o menor sentido. E certamente não fará quando estão colocando três letras. Pode ser em uma transição, mas aí não é necessário ficar contando quantas vezes a boca abre ou quantas letras a palavra tem. A própria criança começa a batalhar para colocar as letras. Ou você pode - e para isso é preciso conhecê-la intelectualmente - dizer: "Você sabe fazer melhor do que isso. Pense mais um pouco".

É comum a ideia de que, na leitura de textos memorizados, o importante é guardar a grafia das palavras. Isso está certo?
Telma Não está clara, para quem pensa dessa forma, a importância do trabalho com textos memorizados. Em primeiro lugar, não é qualquer texto que pode ser utilizado. Deve ser um texto estável, não o segundo parágrafo da história da Bela Adormecida. Existe um vasto repertório infantil, naturalmente memorizado. São versinhos, parlendas e trava-línguas, usadas em brincadeiras de roda e jogos verbais, que as crianças já sabem ou podem aprender oralmente na escola, usados em dois tipos de atividades muito interessantes. Uma é juntar duas delas (com níveis próximos de conhecimento, de forma que uma possa contribuir com a outra) para produzir uma escrita. Por exemplo, "a galinha do vizinho bota ovo amarelinho". Como as duas sabem de memória, tudo o que têm de intercambiar é que letras colocar e onde. Se estivessem redigindo um texto inventado, não teriam um problema comum para resolver. Mas sendo um texto estável, tomam decisões em função desse conhecimento prévio.
Outro tipo de trabalho é pedir que acompanhem, sabendo o que está escrito em cada verso, a leitura que alguém faz. Elas sabem que, na primeira linha, está escrito "a galinha do vizinho" e, na segunda, "bota ovo amarelinho", porque você informou. O que está por trás disso? O fato de que ninguém nasce sabendo que se escreve tudo aquilo que se fala, na ordem em que se fala, sem omitir nada. No início, imagina-se que só se escreve os substantivos. Se você tem "a galinha do vizinho", pensam que está escrito "galinha" e "vizinho". Para "bota ovo amarelinho", os mais avançados podem achar que está escrito "bota", "ovo" e "amarelinho", mas não necessariamente nessa ordem. É interessante pedir para localizar e ler pedaços, que são as "palavras" (mas, se você disser "palavras", eles procurarão as letras). Você pode perguntar onde está escrito "vizinho". Eles acompanharão o texto e começarão a localizar as partes do escrito e relacioná-las ao falado.

Esse tipo de atividade tem um papel extremamente importante e não aprendemos isso com a psicolinguística ou com a didática. Mas com a história da leitura, com investigações sobre como as populações antigas se alfabetizaram. Descobriu-se que, nos países nórdicos, por exemplo, toda a população era alfabetizada antes de haver escolas. Protestantes de orientação calvinista, eles tinham uma prática sistemática de acompanhar nos textos o que se falava nos cultos. Todos eram incorporados a esse universo em que a palavra escrita nos textos religiosos era tratada como uma coisa básica, essencial. As pessoas acompanhavam e decoravam para se aproximar desse objeto sagrado que era a escrita. Isso também aconteceu nas escolas religiosas judaicas e ocorre nas escolas religiosas muçulmanas - mas nessas duas instituições o aprendizado é apenas para os homens. Essa é a origem do trabalho que fazemos com textos memorizados. Já a memorização da forma escrita produz um efeito contrário. Sempre que os professores insistem na memorização da forma, os alunos, no esforço de lembrar como as palavras são escritas, produzem uma escrita caótica, e não a que produziriam se estivessem pensando em como se escreve. 

O professor ainda acredita que, ao pedir que a criança acompanhe a leitura com o dedo, é capaz de fazê-la ler, sem observar se ela faz a relação do escrito com o falado?


Telma Sobre esse assunto, eu gostaria de fazer um mea culpa público. Certa vez, em um vídeo, depois de dizer muitas vezes "ler apontando com o dedinho", eu disse "ler com o dedinho". Muita gente repete isso, mas é uma bobagem. Ler acompanhando com o dedo serve, por exemplo, para aproveitar as possibilidades de uma atividade em que se leia um texto memorizado em público. Para um sarau de poesia, cada um tem um poema, leva para casa, pede ajuda à família, estuda, decora, aponta e tenta acompanhar, pois terá de se apresentar publicamente. Essa situação de focalização e de achar as partes do texto para se apresentar de forma adequada ajuda a descobrir em quem pedaço está escrito o quê. Agora, passar o dedo embaixo, em si, não é nada. A leitura da escrita não entra pela pele. Faz sentido apenas se houver reflexão sobre a grafia das palavras e se quem está lendo tenta ajustar aquilo que fala ao que está escrito. A forma adequada de organizar esse tipo de atividade é, por exemplo, todos cantarem uma canção juntos. De repente, o professor bate palma, pára numa determinada palavra e anda pela sala para ver se os dedos estão onde deveriam estar. Se não estiverem, ajuda a entender a posição certa. Se simplesmente diz "acompanhe com o dedo" e vai embora, não acontece nada. É preciso construir uma situação de aprendizagem e não ficar alisando papel. Para isso, é preciso estudar, buscar uma compreensão teórica que vai muito além de apenas saber identificar uma hipótese de escrita. 

O que leva o professor a passar questionários em vez de promover comentários sobre as histórias lidas - como fazemos com amigos, quando lemos um livro?

Telma Ou pedir que façam um desenho, o que é ainda pior... O intercâmbio de ideias a partir de uma situação de leitura é algo que se faz apenas quando se tem uma experiência significativa e intensa como leitor. Quando lemos com ou para as crianças, tentamos constituir bons comportamentos leitores. Mas, para que você funcione como um modelo desses comportamentos, também precisa ser um leitor. Essa prática de ler uma história e depois pedir um desenho não tem nada a ver com a ideia de que o que se lê pode ser aprofundado, explorado, re-elaborado e compartilhado. Quando se tem a concepção de que a leitura não é simplesmente fazer barulho com a boca diante das marcas gráficas, sabe-se que ela produz em mim um impacto diferente do que em você, e que eu posso ter observado mais um aspecto do que outro e que podemos nos interessar por coisas diferentes. Esse espaço de intercâmbio é um espaço de trocas. Eu tenho visto perguntarem "de que pedaço você gostou mais?", "E você?". Assim, podam o intercâmbio real, que seria "quem achou uma coisa interessante que gostaria de contar aos amigos?". Se não souberem como fazer isso, você dá o modelo: "Lendo esse texto, eu pensei nisso, me lembrei daquilo, achei muito interessante a forma com que o autor escreveu, parecia que ele queria dizer uma coisa, mas queria dizer outra". É interessante fazer perguntas sobre aspectos de uma história que talvez poucos tenham entendido.
Há uma escritora que escreve em espanhol e tem uma série de livros sobre uma menina com uma amiga igualzinha a ela, mas que é gigante e aparece sempre que a garota precisa se proteger dos adultos. Só que isso nunca é dito explicitamente. Se você pergunta "quem é essa amiga grande?", "ela existe de verdade?", uma discussão louca surge na classe. Porque a personagem é, na verdade, uma representação do desejo da menina que se salva das maldades dos adultos. Mas as crianças não têm isso claro, apenas uma vaga intuição. Também é interessante perguntar "quem estava contando essa história? A personagem? A mãe dela?". Em geral, respondem que "é a escritora". E você pode questionar "mas aqui diz ‘eu não gosto que me penteiem os cabelos porque arranca e dói’. A escritora disse isso?" Aparece, então, a ideia do narrador, que, para as crianças, é completamente misturada à do escritor.

O professor já compreendeu a importância dos livros na alfabetização. Mas ele oferece variedade de materiais de leitura?
Telma A variedade dos gêneros ultrapassa a ideia dos livros. Só no jornal e nas revistas há uma variedade enorme de gêneros. Se o professor não entende isso, usa esses portadores para recortar letras. Se entende, aprende como explorar os gêneros que há dentro deles. Os livros infantis, em geral, não têm uma grande variedade de gêneros. Têm, eu diria, subgêneros. São todos livros de ficção, mas alguns falam de mistério, outros de assombração ou de fadas. Mas acho que o problema é anterior: o professor tem de ler para si mesmo, para selecionar o texto, com critérios, antes de levá-lo para as crianças.
Eu acompanhei uma classe de alfabetização em que todos estavam envolvidos com os livros de histórias, menos um menino. Quando se falava em leitura e escrita, ele saía de perto e ia fazer outra coisa. Aparentemente, não tinha interesse. Até o dia em que chegou uma enciclopédia de dinossauros. Nesse dia, o menino ficou absolutamente fascinado, agarrou a enciclopédia. Ele não tinha alma de ficcionista, ele tinha alma de cientista. Precisamos reconhecer essas diferenças. Ele não tinha vontade de aprender a ler para ler sozinho as histórias infantis. Mas ele tinha muita vontade de aprender a ler para classificar os dinossauros, saber de que época eram e o que faziam. Aprendeu a ler em dias. É uma mudança de gênero, mas foi também uma mudança de mundo para o garoto.

Variar os gêneros é importante, mas não é uma ideia mecânica. Quando introduzimos um gênero novo, é preciso ter um sentido para isso. Para ler poemas, tenho um foco, se vou ler histórias, tenho outro. O que os diferentes gêneros permitem é abrir o leque das possibilidades de leitura e oferecer o discurso escrito em suas diversas formas. Porque, na verdade, quando as crianças ouvem o adulto ler, não aprendem só o enredo, mas também sua linguagem, que não é igual a dos outros. A variedade tem de ser selecionada em função daquilo que a turma pode aprender, das diferenciações que os alunos já têm condições de fazer e que você se sente em condições de oferecer. 

Por que ainda é pequeno o acesso a materiais que favoreceriam, na produção de um texto, a busca de informações em diversas fontes?

Telma Há um medo mortal de trabalhar verdadeiramente com jornais porque se pensa que é um texto adulto. Isso não é verdade. Certa vez, vi uma professora fazer um trabalho muito interessante. Os meninos tinham de assistir o noticiário da TV e, no dia seguinte, ela levava o jornal impresso para a sala, para que encontrassem as informações sobre os fatos do dia anterior. Ler os títulos, o subtítulo da reportagem, uma parte inicial do texto é algo muito possível de fazer, especialmente quando se tem sensibilidade para escolher o quê. Você não vai, por exemplo, propor a leitura de uma reportagem sobre uma chacina. Mas pode ler sobre quem jogou no domingo, quem ganhou o campeonato ou a corrida. Quando alguém relata algo que viu, você pode perguntar se a turma deseja escutar a história contada no jornal impresso, mais detalhada. Eu sou uma defensora convicta da presença do jornal na sala de aula porque os fatos são a fonte da história. Nele, lemos sobre acontecimentos de países distantes. Com um mapa múndi na classe você aponta, por exemplo, onde ocorreu uma avalanche e aborda questões como o que é isso, por que acontece. Esse trabalho é fascinante.

Mas é preciso ter a inteligência das crianças em alta conta. Quando se espera mais, elas devolvem mais. Quando se espera pouco, elas devolvem um pouquinho. O fato de trabalhar no limiar superior faz com que avancem muito mais do que quando se pensa "elas não vão entender". É claro que sozinhas elas não entendem. Tudo isso vale para enciclopédias, jornais, textos de ficção, revistas. Mas é preciso fazer uma aposta alta. Não uma aposta cega, sem olhar se a turma está acompanhando. E, sim, a mais alta possível, ajustada àquilo que as crianças mostram que são capazes de pensar e fazer. 

O professor encontra dificuldades em dar atividades diferenciadas para os que já estão alfabéticos e também precisam avançar? Como agir nesses casos?

Telma Isso é o mais fácil. Os já alfabéticos podem ler, escrever, produzir textos, ser envolvidos em projetos mais complexos. Estes não são o problema. O problema são os que ainda não compreenderam o sistema. Às vezes, há alfabéticos que não são leitores. Nesse caso, é preciso construir situações que ajudem a desembaraçar a leitura, que não é algo que vem sozinho. Não é porque uma criança colocou todas as letras que ela já sai lendo. Poucas fazem isso. A maioria precisa construir uma prática de leitura para se soltar. Tenho uma experiência recente com uma que estava escrevendo silabicamente com valor sonoro. Quando ela já sabia todas as letras, foi possível pensar em trabalhar questões como "essa letra serve para escrever esse som, mas é só essa? Tem mais? Você poderia colocar outra no lugar?" Então, ela avançou rapidamente para uma escrita alfabética, cheia de erros de ortografia, mas alfabética. Mas dizia "eu não sei nada porque escrevo, mas não sei ler. Eu escrevo nessa letra e tudo o que eu vejo está escrito numa letra que eu não conheço". Então, fiz uma tira de correspondência, com as letras de forma e de imprensa. Todas as vezes que não conseguia reconhecer uma letra, o menino via na tira. Mas isso empacava a leitura. Quando ele terminava a segunda palavra, já não sabia mais sobre o que era o texto. Passei a propor que lesse desse jeito e, depois de destrinchar todo o texto, voltasse a estudá-lo para ler rápido, pois só se entende o que se lê quando se lê rápido. Sozinho, ele se treinou, voltou e disse: "Estou lendo tudo". E estava mesmo. Porque, na verdade, ele não tinha se soltado da ideia de que era necessário ler todas as letras. Na medida em que pedi para que avançasse além dessa leitura letra por letra, ele teve de usar as estratégias de leitura. Isso fez com que ganhasse velocidade e compreensão. Conforme passou a compreender o que lia, a vontade de ler cresceu e a leitura melhorou. Esse é um ciclo virtuoso.

Ainda persiste a ideia de que as crianças só podem ter contato com histórias curtinhas, nunca lidas em capítulos?

Telma Essa mania de que tudo tem de ser pequenininho é uma deturpação da concepção de criança e, principalmente, um desrespeito enorme. Porque ela senta na frente da TV, vê uma novela em 180 capítulos, lembra de todos os personagens, quem casou com quem, quem brigou com quem e o que vestia em tal dia. As crianças não têm problemas de memória, quem tem problemas de memória somos nós. Elas têm tudo fresquinho na cabeça. Minha experiência pessoal é a de escolher livros pela grossura, ao contrário do que alguns fazem. Eu sempre escolho os livros mais grossos porque, se a história for boa, não quero que ela acabe! Esse lugar do leitor que tem prazer na leitura é o que o professor teria de encarnar. Para elas, uma história pequena é pobre e chata. É claro que histórias grandes podem ser pobres e chatas. Mas elas adoram ouvir uma história grande em capítulos, contados um por dia e, no fim da leitura: "tchan tchan tchan tchan, agora aguardem o capitulo de amanhã! Quem que acha que elas não gostam nunca experimentou. Elas são muito mais inteligentes do que os adultos porque, nesse momento da vida, tudo está para ser aprendido e a disponibilidade para a aprendizagem é enorme. Quando perdem isso é porque os adultos destruíram. O fracasso reiterado mata essa disponibilidade. 

Como deve ser o trabalho do 3º ano em diante no que se refere ao aprimoramento da leitura e da escrita?

Telma Você já disse a palavra: aprimoramento. Em primeiro lugar, ninguém deveria chegar ao final da segunda série sem compreender o sistema de escrita e sem ler. Daí pra frente, todo o trabalho é de estabelecer objetivos cada vez mais complexos para a mesma coisa, que é ler e escrever. O nome do conteúdo não muda e, sim, o que está lá dentro. O que acontece é que muitos imaginam que, quando se é capaz de colocar todas as letras e ler alguma coisa, ainda que silabando, está encerrada a aprendizagem da leitura e da escrita. Uma prova de que isso não é verdade é que os meus alunos na pós-graduação estão aprendendo a ler textos acadêmicos, porque infelizmente as faculdades onde estudaram, em vez de deixá-los ler textos acadêmicos adequados à competência deles, criam as apostilas, simplificando o conteúdo, no pior sentido da palavra. Isso os impediu de construir a capacidade de ler textos de certo grau de complexidade, de um determinado gênero.
Aprende-se a ler e a escrever ao longo da vida toda. Não basta ser alfabético e ser capaz de ler um outdoor para ser alfabetizado. Quando entendemos isso, ajudamos os meninos a se aproximar de textos cada vez mais complexos. Esse trabalho os transforma em leitores cada vez melhores e de uma gama mais ampla de gêneros. E aprender por meio dos textos é condição para estudar os outros conteúdos na escola. Para quem não sabe aprender a partir de um texto escrito, o destino depois da quinta série é o fracasso.

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