Eu sempre fui mesmo que
sem querer uma professora, mesmo que de início uma má educadora.
Fui a irmã mais velha,
encarregada de ajudar nas lições dos irmãos menores, pois a minha mãe, coitada,
não dava conta desse extra. Embora meu pai fosse professor de matemática, era
também militar, e essa tarefa de “explicadora” sobrava para mim. Culpo-me até
hoje pela má caligrafia que meu irmão caçula, embora morra de orgulho das suas
conquistas. Além de militar, ele é graduando de Geografia, mais um futuro
professor.
Na infância, eu era a
culpada de dar os maus exemplos, de não ensinar direito, e embora pretendesse
fazer magistério desde pequena, sempre fui desestimulada a isso, praticamente
sabotada, porque já haviam definido que eu faria uma faculdade. Medicina,
Engenharia ou Arquitetura? A profissão de professor nessa época já estava em
franca decadência.
O grande problema é que
não era isso que eu queria. Na época do antigo científico, eu já nem mais sabia
o que realmente queria estudar para me profissionalizar. Sempre tive facilidade
com matemática, desenho, música e gostava de redação, mas odiava as provas de Gramática,
Geografia e Biologia. Eu não pensava seriamente em prestar vestibular, queria
apenas ser professora. Mas quando viemos morar no Rio de Janeiro, eu fui
matriculada no científico e logo depois a minha mãe adoeceu.
Aos dezessete anos,
quando a minha mãe morreu, abandonei tudo, sabendo que estava rompendo laços
eternos. Fugi de casa sabendo que não poderia voltar nunca mais. Abandonei a
escola e também os meus irmãos, à loucura de um pai desesperado, vendo-se viúvo
e responsável por três adolescentes, ainda mais com uma filha quase adulta e
problemática como ele dizia que eu era. E talvez eu fosse mesmo.
Quando resolvi fugir de casa, pensei que
parcialmente solucionava um problema familiar, pois seriam, a partir da minha
fuga, apenas dois para ele cuidar. Na época, parti sem arrependimentos, embora
hoje eu me considere uma covarde, pois deveria tê-lo enfrentado apesar do medo.
No entanto, naquela época, eu preferi evitar o confronto e tentar ser feliz.
Mas a vida dá voltas
muito rápidas, e não demorou mais que um ano para eu ser a professorinha do
MOBRAL de uma cidade litorânea, distrito de Maricá, onde eu também era
manicure, sacoleira, diarista e, francamente falando, faltava-me didática,
prática pedagógica, e todo o resto que eu nunca estudei para ser uma professora
de verdade e conseguir alfabetizar um adulto. Durante essa experiência, eu me tornei
quase “psicóloga de boteco”, era mais amiga que professora desses alunos,
embora nessa época eu nem bebesse nada alcoólico, mas a minha sala de aula era
um ex-botequim em frente à Igrejinha de Itaipuaçu.
Meus alunos adultos
eram todos analfabetos funcionais. Quando escreviam era apenas o nome para
votar. Esses alunos adultos me cobravam métodos de uma cartilha convencional,
mas a metodologia do MOBRAL não era essa. Era uma espécie de Paulo Freire às
avessas, e eu jamais consegui alfabetizar realmente sequer um adulto, no máximo
formei mais um ou dois analfabetos funcionais. Mas, com as crianças do
“MOBRALZINHO”, eu obtive pequenos êxitos, porque com eles eu tinha a
possibilidade e a liberdade de trabalhar o lúdico por meio da musicalidade. Eu
sabia pelo menos tocar violão e eles adoravam cantar.
De início, estava toda
preocupada em ensaiar as músicas infantis recomendadas durante o treinamento,
mas os pequenos me pediam para tocar “Fuscão Preto”. Eu também acabava
ensinando tabuada cantada batucando nas carteiras, pois eu detestava as músicas
bregas, embora vez por outra fizesse a vontade deles. Foi uma experiência única
e mágica trabalhar com as crianças, pois o MOBRAL estava acabando na década de
oitenta.
Mas vida mudou novamente. Voltei para o Rio de
Janeiro, reencontrei uma paixão adolescente, casei, tive meu primeiro filho,
tornei-me uma senhora respeitável nos padrões burgueses. Embora sem o perdão do
meu pai, a minha avó paterna de oitenta anos veio morar comigo e me ajudou a
criar a minha filha. Na empolgação, eu tive mais dois meninos e, graças à ajuda
dela, pude curtir a plenitude das infâncias das minhas crias sendo mãe e educadora
deles em tempo integral.
Meus filhos antes da
escola já estavam alfabetizados. Cada um no seu tempo e de acordo com nossas
possibilidades fez atividades extras como cursinhos preparatórios e aulas de
natação, mas todos estudaram o ensino básico em escolas públicas.
Eu sou do tempo que
rezavam as lendas: “para respeitar o mar é preciso um susto”; “para aprender a
andar de bicicleta tem de cair”, embora aos dez anos eu tenha ensinado meu
irmão caçula de cinco anos a me levar de carona na bicicleta sem que ele tenha
levado um tombo sequer.
Com os meus filhos
também foi tranquilo esse aprendizado. Todos aprenderam sem grandes traumas. Apenas
com rodinhas das mais baratas adaptadas às pequenas bicicletas, que se
desgastavam rapidamente em um quintal enorme e, quando nos dávamos conta, eles
já estavam andando de bicicleta sem as rodinhas. Eu não deixava meus filhos
brincarem sozinhos na rua, tinha medo, pois naquela época ainda não existia
asfalto no loteamento onde moramos.
O pretenso Condomínio
Terra do Sol – Jacarepaguá, em 1993 ainda era apenas uma rua de barro batido sem
saída, com os bueiros sem tampa, poucas residências e muitos terrenos
desocupados, verdadeiros matagais com gambás, micos, corujas, ratos, lixo e novas
construções insurgentes a cada nova estação. Um verdadeiro perigo para as minhas
crianças pequenas que até então foram criadas em um apartamento no Grajaú com playground
e parquinho.
Para compensá-las,
transformei o nosso quintal em um verdadeiro jardim de infância com direito à
casa de boneca com caixa de jogos, livros infantis e instrumentos musicais,
escorrega, balanço, piscina de fibra mínima – diâmetro de dois metros com
altura de cinquenta centímetros – e um tanquinho de areia. Passou a ser um local
onde eles podiam trazer seus amiguinhos aos finais de semana e se divertir a
valer.
A primeira vez que me
senti professora foi quando ensinei meu bebê com menos de um ano a mergulhar
naquela minúscula piscina. Depois coloquei todos os filhos em aula de natação
com uma professora de verdade, e todos aprenderam a nadar e respeitam o mar.
Mas o momento que me
senti uma baita professora das minhas crianças foi quando retornou a moda dos
patins. Eu não sabia andar de patins, na verdade, tinha alguns traumas da
infância longínqua. Na casa de meus pais, era um par de patins para três
crianças, e, quando eles estavam nos meus pés, alguém sempre me empurrava e eu caía.
Desisti de tentar aprender a patinar na juventude.
Mas, comprei para meus
filhos um par de patins para cada, com todos os protetores necessários e
ensinei-os dentro de casa mesmo, eram poucos móveis na sala e, como eles eram
tão pequenos, a minúscula casa parecia o corredor de um palácio.
Quando todos aprenderam, animei-me. Convenci-me
de que assim como eu soube ensinar-lhes, também aprenderia. Comprei meus patins,
pratiquei em casa e depois fui para a rua com minhas crianças. Fase muito boa curtir
minhas crias e a rua recém-asfaltada de nosso condomínio.
Em 2009, com os filhos
praticamente adultos, para a decepção de alguns, passei no vestibular do Instituto
Superior de Educação do Rio de Janeiro – ISERJ, uma instituição pública e
centenária, referência dos anos dourados da educação pública. Retomei o sonho
de infância de ser uma professorinha, e uma das minhas primeiras ações foi
abrir um blog para ser uma espécie de
caderno virtual da minha turma, compartilhar minhas impressões, dividir com os
amigos o nosso aprendizado e me apropriar dessa nova ferramenta educacional. Porém,
o blog Pedagogia Iserj tomou uma
amplitude que eu nem pretendia, e hoje já tem mais de quarenta e cinco mil
acessos.
Por conta desse
primeiro blog, ainda em 2009, fui
convidada a compor a nova chapa do Centro Acadêmico Cecília Meireles – CACM,
simplesmente para abrir um blog para
o CACM-ISERJ e podermos deixar públicas as ações dessa representatividade
estudantil que estava na transição do Curso Normal Superior para Pedagogia. Fiz
parte do CACM até 2012 e também fui conselheira estudantil no colegiado
acadêmico do ISERJ durante 2011 e 2012.
Ainda em 2010, enquanto
cursava o segundo período de Pedagogia, a convite da minha filha Fernanda,
graduanda de Letras na UERJ e de Fabiana Rosa, graduanda de Pedagogia da UERJ,
passei a colaborar em um projeto delas junto ao Abrigo Ayrton Senna em Vila
Isabel que batizamos com a sigla EAC – Espaço de Aprendizagem Cultural. Duas
vezes por semana, durante a tarde, íamos ao abrigo e ficávamos na biblioteca
emprestando livros, contando histórias, realizando atividades de leitura e
escrita da forma mais natural e lúdica possível. Utilizávamos filmes, músicas,
parlendas, dinâmicas de grupo. Muitas vezes era difícil, pois a diversidade da
turma era gritante. Tínhamos crianças que estavam alfabetizadas, mas isso não
era a regra e ainda faltava-me a prática e a didática de uma professora
alfabetizadora.
Para conseguirmos
voluntários ou estagiários e podermos dar um atendimento diário às crianças do
abrigo, Fernanda e Fabiana escreveram o Projeto EAC e tentaram
institucionalizá-lo pela UERJ, mas nada conseguiram. Com a autorização delas,
abri o blog Projeto EAC e resolvi
tentar essa institucionalização no ISERJ. Sob a coordenação da Malu, atual coordenadora
de Pesquisa e Extensão, o projeto foi lindamente reescrito e melhor
fundamentado. Porém, apesar de aprovado na reunião do colegiado acadêmico em
2010, o projeto morreu engavetado no setor de estágios do ISERJ, e a ideia de
aproveitar aquele espaço no abrigo para estágio obrigatório em espaços não
escolares não vingou.
Mesmo assim
perseveramos em nosso intuito de levar o projeto adiante durante uns dois anos,
mas o espaço conquistado acabou tendo outro destino, voltou a ser espaço de
acolhimento de jovens adolescentes que viviam nas ruas em condições de risco.
Em 2011, tornei-me
pesquisadora do Projeto Aprender nas Ruas: um projeto transdisciplinar de
educação – ProAR, coordenado pela Bia Albernaz. Um projeto com apoio da FAPERJ
que nasceu por conta de outro blog, o
Cidade Educativa – RJ, criado para publicar os textos produzidos pelos alunos
de Pedagogia da disciplina Estudos Interdisciplinares do Rio de Janeiro. E não
posso negar que essa experiência de um ano como pesquisadora colaborou para
ampliar a minha visão de mundo sobre o que pode ser uma educação transformal
além dos muros e grades de uma instituição, pois segundo Jam Clam “A sociedade
é, além do privado e do público, o lugar de dissolução de sua diferença”.
Acreditando nesse
propósito, comentei a proposta do Projeto EAC em uma reunião com um coletivo
que conheci pelo Facebook em 2012 por
conta da pesquisa do ProAR. O pessoal da Rede Norte Comum ligado ao SESC-Tijuca
abraçou a ideia e está fazendo a diferença para esses jovens no abrigo Ayrton
Senna. Esse coletivo tem realizado um trabalho diferenciado por lá com oficinas
de produção e edição de vídeo, dobraduras, reciclagem, horta orgânica, debates,
etc. Uma vez por mês, nas tardes de sábado, também promovem por lá um evento
cultural chamado Ocupa Ayrton onde, compartilhando suas ações nas suas redes
sociais, arranjam mais voluntários para disponibilizar aos jovens em condição
de acolhimento várias formas de lazer e cultura por meio da arte e da música.
Mas foi principalmente durante
essa experiência no Projeto EAC que percebi a real necessidade de investir
paralelamente na minha formação contínua com mais especificidade e afinco na
alfabetização. Assim, em 2010 decidi fazer o II Curso de Extensão do GEFEL, no
qual conheci a Margaridinha e por um semestre também participei como voluntária
no seu Projeto Investigativo Lendo e Escrevendo junto às crianças do 5º ano do
CAp-ISERJ.
Passei a fazer parte
desse grupo de estudos e a ser uma das responsáveis pelas atualizações do blog para a divulgação nas mídias
eletrônicas das Sextas no GEFEL, minicursos que acontecem sempre nas tardes das
últimas sextas-feiras de cada mês em nossa sala no ISERJ e também divulgar outros
eventos ligados à educação nos vários blogs
e pages que administro.
No primeiro semestre de
2012, o GEFEL realizou o I Seminário que, além das excelentes palestras no
Teatro Fernando Azevedo, também promoveu oficinas nos outros espaços do ISERJ.
No segundo semestre, está acontecendo o III Curso de Extensão e, além do
quantitativo de inscritas, a frequência das alunas nas manhãs de sábado nos
surpreende. Algumas são professoras recém-aprovadas no último concurso público e
nos emocionam com suas vivências.
Agradeço ao GEFEL por partilhar
suas práticas, dúvidas, equívocos e me acolher no grupo como se eu já fosse uma
professora. Nossas reuniões são ímpares para o meu aprendizado, pois é por meio
do relato reflexivo sobre a prática diária dessas professoras-pesquisadoras que
aprendo a cada encontro em nossas rodas de leitura como se cresce com dignidade,
orgulho e prazer nessa profissão.
Além de continuar estudando, uma das minhas ambições pessoais é um dia colocar
em prática um projeto ainda inconcluso focado na alfabetização com os jovens
das classes populares que fracassam na escola por causa do nosso sistema
escolar público excludente e hegemônico. De preferência, um projeto
autofinanciável por crowdfunding, gerido por um conselho
democraticamente eleito, sem obscuros fins lucrativos, políticos ou pessoais. E não necessariamente ligado a uma instituição escolar que burocratize e
dificulte as ações afirmativas por uma questão de disputa de egos ou simples
politicagem. Com uma licença poética de Lampeduza, muitas vezes parece que apenas
sugerem mudanças para que tudo permaneça como está.
No Brasil, todos os
jovens têm direito à educação básica garantido em lei. Têm de estar obrigatoriamente
matriculados em alguma escola. Mas alguns vivem eternamente marginalizados dentro
do sistema escolar público e excluídos socialmente nas possibilidades de
conseguir um trabalho menos braçal na vida adulta, pois, de fato, não se
percebem sujeitos alfabetizados com condições de prosseguir em seus estudos e
ambicionar uma vida melhor. E o mais triste é que esses jovens acreditam que a
culpa por não estarem plenamente alfabetizados é exclusivamente pelo
desinteresse escolar deles quando ainda eram crianças e por conta de suas
famílias desestruturadas. Como se pertencer a uma família desestruturada fosse prerrogativa
apenas de quem é pobre e o único determinante do fracasso escolar.
Por isso, mesmo atualmente
participando de outros grupos de estudo e pesquisas mais ligados à Filosofia e à
Sociologia, continuo a apostar no GEFEL como fundante para uma melhor formação
pedagógica dos profissionais que acreditam na alfabetização como o diferencial
necessário aos nossos jovens sobreviventes das violências diárias vividas em nossas
comunidades escolares ou grupos sociais.
Compartilhar as
experiências de quem vivencia verdadeiramente essa realidade no chão da escola
pública é um privilégio de poucos. A preleção do GEFEL é muito diferente dos
que apenas teorizam e problematizam a educação, mas preferem mantê-la como está
construindo para as crianças e professoras das classes populares muros cada vez
mais altos ao invés de pontes.
Referência Bibliográfica:
VALLIM, Mônica. "Partilhando projetos, vivências e esperanças". In: SANTOS, Margarida dos et al. Exercícios de autoria: histórias de vida, narrativas de formação docente do/no GEFEL. Rio de Janeiro: Câmara Brasileira de Jovens Escritores, 2013.
VALLIM, Mônica. "Partilhando projetos, vivências e esperanças". In: SANTOS, Margarida dos et al. Exercícios de autoria: histórias de vida, narrativas de formação docente do/no GEFEL. Rio de Janeiro: Câmara Brasileira de Jovens Escritores, 2013.
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