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domingo, 23 de dezembro de 2012

APENAS PARA O ESTUDO DA GRAMÁTICA REFLEXIVA

QUALQUER SEMELHANÇA É MERA COINCIDÊNCIA.
SEMPRE GOSTEI DE PORTUGUÊS, MAS HÁ MUITO TEMPO NÃO VIA UMA AULA DE GRAMÁTICA TÃO BEM PREPARADA...

Pena que não podemos mostrar aos alunos. Num instante eles iriam entender.



- “Filho da puta” é adjunto adnominal, quando a frase for:
"Conheci um político filho da puta".

- Mas se a frase for:
"O político é um filho da puta", daí, é predicativo.

- Agora, se a frase for:
"Esse filho da puta é um político", é sujeito.

- Porém, se o cara aponta uma arma para a testa do político e diz:
"Agora nega o roubo, filho da puta!" - aí é vocativo.

- Finalmente, se a frase for:
"O ex-ministro..., aquele filho da puta, desviou o
dinheiro da educação" daí, é aposto.

Que língua a nossa, não?!
Agora vem o mais importante para o aprendizado:

- Se estiver escrito:
"Saiu da presidência em janeiro e ainda se acha presidente."
O filho da puta é sujeito oculto...


*Recebi por e-mail, mas desconheço o genial autor dessa aula.

sábado, 22 de dezembro de 2012

Entrevista com Telma Weisz sobre alfabetização inicial



Para especialista, o professor alfabetizador precisa apostar alto na capacidade de seus alunos

Ela é a mais respeitada especialista em alfabetização do país. Em sua trajetória profissional, Telma Weisz viveu o conflito de ter trabalhado durante anos numa perspectiva mais tradicional, até ter contato com as ideias da psicogênese da língua escrita. "Aí fiquei furiosa comigo mesma", revela a educadora. Desde então, mudou seu olhar sobre os alunos, percebeu que não se pode subestimar a capacidade intelectual de nenhuma criança, aprofundou-se como ninguém no assunto e, dona de uma generosidade sem igual, dedicou-se a transformar a prática de milhares de professores alfabetizadores por meio do principal curso de formação em Alfabetização do Brasil, o Profa. Hoje, ela supervisiona a versão paulista do programa, o Ler e Escrever, da Secretaria Estadual da Educação. Nesta entrevista a NOVA ESCOLA, Telma abusa de exemplos cotidianos para mostrar equívocos, muitos deles cometidos no passado por ela mesma, que ocorrem na árdua tarefa de ensinar a ler e escrever. E, o mais importante, explica por que eles acontecem, com a autoridade de quem soube, por meio do conhecimento científico, refletir sobre a própria prática para melhorá-la.

NOVA ESCOLA: Ainda há professores que não transmitem informações às crianças por pensar que elas aprendem sozinhas? Qual é a origem dessa dificuldade?
Telma Weisz  Na verdade, isso tem a ver com a própria concepção de ensino. Antigamente, todos tinham a ideia de que ensinar era transmitir informações. Nos últimos 30 anos, quando começamos a descobrir que ensinar é criar condições e situações para a aprendizagem e quando os professores ouviram falar, sem aprofundamento, que as crianças constroem seu conhecimento, muitos acharam que bastava o contato com as letras e o material escrito para que o conhecimento aparecesse naturalmente, por geração espontânea. 
Não sei se ainda há quem pense assim. Eu espero que não, pois é um equívoco. O papel do professor é ser aquele que sabe mais dentro da classe e que valida a informação que circula. Em uma sala, todos estão em atividade intelectual, todos falam, todos elaboram ideias e constroem conhecimento. Não ao mesmo tempo - e esse é outro equívoco -, mas todos têm a oportunidade de expressar o que pensam. A validação deve acontecer, porque todos os saberes que estão sendo construídos são provisórios, elaborados por meio de um processo permanente de aproximação com o conhecimento objetivo.

A interpretação enviesada do construtivismo também tem a ver, em parte, com o fato de que a teoria da psicogênese foi popularizada no Brasil por um conjunto de vídeos de entrevistas com as crianças.                 O entrevistador, que no caso era eu, buscava tornar visíveis as hipóteses que elas formulam quando estão aprendendo a ler e a escrever. Como o objetivo era deixar que os professores vissem-nas pensando em voz alta, a intervenção era pequena. O que foi mal compreendido é que aquilo não era uma situação de ensino nem de pesquisa. Era uma tentativa de ilustrar o que estava no livro [Psicogênese da Língua Escrita, de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky] e que não era de fácil compreensão. Esses mal-entendidos fizeram com que muitos tivessem dúvidas não só sobre informar ou não, mas sobre o que informar. E essa é uma questão delicada porque não há um guia de coisas permitidas ou proibidas. Depende das circunstâncias e daquilo que as crianças pensam em cada momento. 

Como essas dúvidas se revelam na prática?

Telma Por exemplo, se você tem um aluno que está escrevendo uma letra para cada sílaba e ele pergunta "qual é o MI", você pode dar duas respostas. A primeira é: "MI é o M e o I". E a segunda: "O que você quer escrever?", ajudando-o a encontrar uma resposta que caiba na estrutura teórica com a qual ele está trabalhando. Se o menino já está escrevendo alfabeticamente, a situação é outra, mas também tem suas características. Certa vez, um outro me perguntou "Como se escreve lã?". E eu disse "L, A, til". Quando vi, ele havia escrito "balãsa". Dei uma informação errada, porque não tive o cuidado de perguntar "para escrever o quê?". Há uma quantidade enorme de informações que cabe ao professor oferecer, mas é preciso ter condições e critérios para saber quais estudantes podem aproveitá-las. Isso só se consegue fazendo avaliação constante da classe.
Há muitos anos, em um trabalho de pesquisa, observei uma menina que estava repetindo a 1ª série havia cinco anos. A professora, naquele dia, apresentava à classe o alfabeto (para aquela aluna, pela primeira vez). A garota teve uma crise descontrolada de choro e, quando se acalmou, disse "eu sempre saio da escola no meio do ano porque não consigo aprender as letras. Mas eu não sabia que eram tão poucas. Se eu soubesse, não teria ficado tanto tempo aqui até aprender." É uma informação simples, mas se não é dita, como ela vai saber? Outro exemplo: uma criança pergunta "cozinha é com S ou com Z?" O que você faz? Diz a ela "pense para descobrir?" Não tem como pensar para descobrir. Você tem duas alternativas: mandá-la ao dicionário, o que, em determinadas circunstâncias, é uma perda de tempo, ou aproveitar a situação para explicar que é com Z, mas que, muitas vezes, o mesmo som pode ser com S, ainda que entre vogais. Assim, é introduzida uma série de informações que nem todos talvez possam utilizar, dependendo das condições do grupo. Mas, de qualquer maneira, se isso não vier do professor, de onde virá?

O que acontece quando não nos colocamos na perspectiva do aluno?
Telma "Cegamos" o aluno. É porque somos alfabetizados que ouvimos e vemos coisas que, para os que ainda não sabem ler e escrever, não estão lá. Um exemplo simples: muitos professores estão convencidos de que o branco entre as palavras é uma coisa que se pode escutar. Isso só pode acontecer a uma pessoa cuja percepção da relação entre escrita e leitura está de tal maneira organizada em cima da sua própria competência leitora que nem passa por sua cabeça que a fala é um contínuo e que jamais as crianças vão encontrar no falado os elementos que permitirão separar as palavras. E é claro que, dessa perspectiva, ao vê-las escrevendo tudo grudado, imagina-se que há uma disfunção, um problema. Não há. Trata-se de um momento necessário do processo. É preciso aprender a escrever assim para depois pensar na questão das separações.
Colocar-se no lugar do aprendiz é essencial para ensinar. Muitos falam em "palavras", como se as crianças soubessem o que é isso. Mas só gente alfabetizada, que já escreve e segmenta o texto, pode saber o que são palavras. E, às vezes, mesmo quando já fazem isso, recusam a ideia de que os artigos sejam palavras. Não estou dizendo para não usar a terminologia, mas é preciso ter claro que o que se está nomeando não é exatamente o que as crianças pensam que é. Certa vez, perguntei a uma menina o que era "palavra". Ela respondeu: "É o que está escrito na Bíblia." E eu insisti: "Por quê?". "Por que a Bíblia é a palavra de Deus". Imaginar que é obvio escrevermos exatamente como falamos, na mesma ordem, só acontece se não nos colocamos no lugar de quem está aprendendo. Porque, ao assumir essa perspectiva, somos obrigados a olhar de outro jeito. Intuitivamente, ninguém é capaz de fazer isso.
Só com pesquisa cientifica é possível compreender o outro que pensa diferente de você. A vida inteira, vi meninos escreverem coisas que, para mim, não eram escrita, não eram nada. Nunca parei para refletir sobre o que eles estavam pensando. Até o dia em que li sobre a psicogênese. E aí fiquei furiosa comigo mesma, porque já tinha visto aquilo tudo. Qualquer alfabetizador já viu crianças escrevendo com uma letra para cada sílaba ou com menos letras. Na verdade, não dávamos importância. Não olhávamos para isso como uma ação inteligente delas. Sem a ajuda da ciência, não se pode recuperar uma visão que já se teve, mas que foi apagada, numa espécie de esquecimento cognitivo.

Há muitos anos, quando trabalhei com professores indígenas no Acre, estava explicando a eles as hipóteses sobre a escrita e dizendo que, no inicio, as crianças pensam que, para escrever um pedaço do que se fala, basta um pedaço de escrita, que para eles é a letra. Eles me olhavam com estranheza, pois essa ideia de hipótese era muito estranha à cultura local. Até que um deles puxou uma folha antiga de sua pasta. Ele se chamava Norberto, havia feito um desenho e assinado NBT. Era recém-alfabetizado e ainda tinha o documento de suas próprias hipóteses. Foi uma situação interessante ver um adulto recuperar esse esquecimento. Nós não nos lembramos de quando não sabíamos calcular, escrever, ler. Nós não temos a memória viva do que é ser alguém que tem de aprender, que não sabe nada sobre determinada coisa. E os professores, como tais, só podem recorrer ao conhecimento cientifico para recuperar isso. Porque, via bom senso ou afetividade, não se chega a lugar algum. 

Quais são os equívocos mais comuns na escolha das intervenções para fazer a turma avançar nas hipóteses de escrita?

Telma Vejo duas versões sobre isso. Em uma delas, a mais tradicional e frequente, mostra-se aos silábicos quais letras faltam, imaginando que isso os ajuda a chegar a uma hipótese mais avançada. Há uma dificuldade enorme de aceitar e deixar no caderno uma escrita que não esteja ortograficamente correta. "O que os pais vão pensar?", "o aluno achará que está certo", "vai fixar o erro". Na verdade, falta compreensão da diferença entre trabalhar o processo de aprendizagem e trabalhar sobre o produto que a criança está realizando. Toda a tradição de correção com caneta vermelha e de cópia dos erros vem daí - existe o não saber, o saber errado e o saber certo. E é claro que isso corresponde a uma concepção de aprendizagem, para a qual o ensino, por sua vez, cuida de evitar que se fixem na memória ideias erradas. Na visão construtivista, com uma abordagem psicogenética da alfabetização, fica claro que aquela escrita, errada segundo os padrões convencionais, faz parte de um processo do aluno. E que, naquele momento, é preciso estimular o máximo possível a reflexão sobre o que se escreve. É possível e necessário subsidiá-lo para ajudá-lo, o que é muito diferente de dar informações para obter um produto correto.
A segunda versão é uma leitura parcialmente equivocada do que chamamos de conflito cognitivo. Ou seja, o que faz um menino, que está lá, bem satisfeito da vida, escrevendo uma letra para cada sílaba e conseguindo se virar assim, abandonar essa hipótese que, do ponto de vista teórico, é tão elegante? Como é que ele avança? Além da hipótese de que, para cada vez que abrimos a boca, usamos uma letra, ele tem outras, como a de que não pode escrever uma mesma letra repetida, escrever com poucas letras e, de forma alguma, escrever com uma letra só. Mas, para alguns, duas letras também é muito pouco. A média estatística da exigência é em torno de três letras. O que acontece com uma língua como o português, com uma quantidade enorme de palavras dissílabas? Toda vez que a criança escreve um dissílabo, tem um problema, pois precisa colocar alguma coisa para não cometer um "sacrilégio". Essa contradição entre os esquemas explicativos que ela tem para a leitura e a escrita é que dá origem e espaço ao que chamamos de conflito cognitivo.
A partir dessa explicação, os professores fazem uma assimilação de que é preciso produzir situações conflitivas o tempo todo. Mas o conflito ou é do aprendiz ou vira uma conversa sem nexo para ele. Uma das atitudes equivocadas mais clássicas nessa linha é mandar contar os pedaços de uma palavra falada. Por exemplo, para "borracha", bater três palmas, uma em cada sílaba. Então, o professor escreve a palavra, pergunta quantas letras tem e diz: "Você pensa que abrimos a boca três vezes e que é preciso colocar três letras, mas eu estou mostrando que não é, e que borracha, no papel, tem oito letras". Dependendo de em que nível os meninos estejam, isso não faz o menor sentido. E certamente não fará quando estão colocando três letras. Pode ser em uma transição, mas aí não é necessário ficar contando quantas vezes a boca abre ou quantas letras a palavra tem. A própria criança começa a batalhar para colocar as letras. Ou você pode - e para isso é preciso conhecê-la intelectualmente - dizer: "Você sabe fazer melhor do que isso. Pense mais um pouco".

É comum a ideia de que, na leitura de textos memorizados, o importante é guardar a grafia das palavras. Isso está certo?
Telma Não está clara, para quem pensa dessa forma, a importância do trabalho com textos memorizados. Em primeiro lugar, não é qualquer texto que pode ser utilizado. Deve ser um texto estável, não o segundo parágrafo da história da Bela Adormecida. Existe um vasto repertório infantil, naturalmente memorizado. São versinhos, parlendas e trava-línguas, usadas em brincadeiras de roda e jogos verbais, que as crianças já sabem ou podem aprender oralmente na escola, usados em dois tipos de atividades muito interessantes. Uma é juntar duas delas (com níveis próximos de conhecimento, de forma que uma possa contribuir com a outra) para produzir uma escrita. Por exemplo, "a galinha do vizinho bota ovo amarelinho". Como as duas sabem de memória, tudo o que têm de intercambiar é que letras colocar e onde. Se estivessem redigindo um texto inventado, não teriam um problema comum para resolver. Mas sendo um texto estável, tomam decisões em função desse conhecimento prévio.
Outro tipo de trabalho é pedir que acompanhem, sabendo o que está escrito em cada verso, a leitura que alguém faz. Elas sabem que, na primeira linha, está escrito "a galinha do vizinho" e, na segunda, "bota ovo amarelinho", porque você informou. O que está por trás disso? O fato de que ninguém nasce sabendo que se escreve tudo aquilo que se fala, na ordem em que se fala, sem omitir nada. No início, imagina-se que só se escreve os substantivos. Se você tem "a galinha do vizinho", pensam que está escrito "galinha" e "vizinho". Para "bota ovo amarelinho", os mais avançados podem achar que está escrito "bota", "ovo" e "amarelinho", mas não necessariamente nessa ordem. É interessante pedir para localizar e ler pedaços, que são as "palavras" (mas, se você disser "palavras", eles procurarão as letras). Você pode perguntar onde está escrito "vizinho". Eles acompanharão o texto e começarão a localizar as partes do escrito e relacioná-las ao falado.

Esse tipo de atividade tem um papel extremamente importante e não aprendemos isso com a psicolinguística ou com a didática. Mas com a história da leitura, com investigações sobre como as populações antigas se alfabetizaram. Descobriu-se que, nos países nórdicos, por exemplo, toda a população era alfabetizada antes de haver escolas. Protestantes de orientação calvinista, eles tinham uma prática sistemática de acompanhar nos textos o que se falava nos cultos. Todos eram incorporados a esse universo em que a palavra escrita nos textos religiosos era tratada como uma coisa básica, essencial. As pessoas acompanhavam e decoravam para se aproximar desse objeto sagrado que era a escrita. Isso também aconteceu nas escolas religiosas judaicas e ocorre nas escolas religiosas muçulmanas - mas nessas duas instituições o aprendizado é apenas para os homens. Essa é a origem do trabalho que fazemos com textos memorizados. Já a memorização da forma escrita produz um efeito contrário. Sempre que os professores insistem na memorização da forma, os alunos, no esforço de lembrar como as palavras são escritas, produzem uma escrita caótica, e não a que produziriam se estivessem pensando em como se escreve. 

O professor ainda acredita que, ao pedir que a criança acompanhe a leitura com o dedo, é capaz de fazê-la ler, sem observar se ela faz a relação do escrito com o falado?


Telma Sobre esse assunto, eu gostaria de fazer um mea culpa público. Certa vez, em um vídeo, depois de dizer muitas vezes "ler apontando com o dedinho", eu disse "ler com o dedinho". Muita gente repete isso, mas é uma bobagem. Ler acompanhando com o dedo serve, por exemplo, para aproveitar as possibilidades de uma atividade em que se leia um texto memorizado em público. Para um sarau de poesia, cada um tem um poema, leva para casa, pede ajuda à família, estuda, decora, aponta e tenta acompanhar, pois terá de se apresentar publicamente. Essa situação de focalização e de achar as partes do texto para se apresentar de forma adequada ajuda a descobrir em quem pedaço está escrito o quê. Agora, passar o dedo embaixo, em si, não é nada. A leitura da escrita não entra pela pele. Faz sentido apenas se houver reflexão sobre a grafia das palavras e se quem está lendo tenta ajustar aquilo que fala ao que está escrito. A forma adequada de organizar esse tipo de atividade é, por exemplo, todos cantarem uma canção juntos. De repente, o professor bate palma, pára numa determinada palavra e anda pela sala para ver se os dedos estão onde deveriam estar. Se não estiverem, ajuda a entender a posição certa. Se simplesmente diz "acompanhe com o dedo" e vai embora, não acontece nada. É preciso construir uma situação de aprendizagem e não ficar alisando papel. Para isso, é preciso estudar, buscar uma compreensão teórica que vai muito além de apenas saber identificar uma hipótese de escrita. 

O que leva o professor a passar questionários em vez de promover comentários sobre as histórias lidas - como fazemos com amigos, quando lemos um livro?

Telma Ou pedir que façam um desenho, o que é ainda pior... O intercâmbio de ideias a partir de uma situação de leitura é algo que se faz apenas quando se tem uma experiência significativa e intensa como leitor. Quando lemos com ou para as crianças, tentamos constituir bons comportamentos leitores. Mas, para que você funcione como um modelo desses comportamentos, também precisa ser um leitor. Essa prática de ler uma história e depois pedir um desenho não tem nada a ver com a ideia de que o que se lê pode ser aprofundado, explorado, re-elaborado e compartilhado. Quando se tem a concepção de que a leitura não é simplesmente fazer barulho com a boca diante das marcas gráficas, sabe-se que ela produz em mim um impacto diferente do que em você, e que eu posso ter observado mais um aspecto do que outro e que podemos nos interessar por coisas diferentes. Esse espaço de intercâmbio é um espaço de trocas. Eu tenho visto perguntarem "de que pedaço você gostou mais?", "E você?". Assim, podam o intercâmbio real, que seria "quem achou uma coisa interessante que gostaria de contar aos amigos?". Se não souberem como fazer isso, você dá o modelo: "Lendo esse texto, eu pensei nisso, me lembrei daquilo, achei muito interessante a forma com que o autor escreveu, parecia que ele queria dizer uma coisa, mas queria dizer outra". É interessante fazer perguntas sobre aspectos de uma história que talvez poucos tenham entendido.
Há uma escritora que escreve em espanhol e tem uma série de livros sobre uma menina com uma amiga igualzinha a ela, mas que é gigante e aparece sempre que a garota precisa se proteger dos adultos. Só que isso nunca é dito explicitamente. Se você pergunta "quem é essa amiga grande?", "ela existe de verdade?", uma discussão louca surge na classe. Porque a personagem é, na verdade, uma representação do desejo da menina que se salva das maldades dos adultos. Mas as crianças não têm isso claro, apenas uma vaga intuição. Também é interessante perguntar "quem estava contando essa história? A personagem? A mãe dela?". Em geral, respondem que "é a escritora". E você pode questionar "mas aqui diz ‘eu não gosto que me penteiem os cabelos porque arranca e dói’. A escritora disse isso?" Aparece, então, a ideia do narrador, que, para as crianças, é completamente misturada à do escritor.

O professor já compreendeu a importância dos livros na alfabetização. Mas ele oferece variedade de materiais de leitura?
Telma A variedade dos gêneros ultrapassa a ideia dos livros. Só no jornal e nas revistas há uma variedade enorme de gêneros. Se o professor não entende isso, usa esses portadores para recortar letras. Se entende, aprende como explorar os gêneros que há dentro deles. Os livros infantis, em geral, não têm uma grande variedade de gêneros. Têm, eu diria, subgêneros. São todos livros de ficção, mas alguns falam de mistério, outros de assombração ou de fadas. Mas acho que o problema é anterior: o professor tem de ler para si mesmo, para selecionar o texto, com critérios, antes de levá-lo para as crianças.
Eu acompanhei uma classe de alfabetização em que todos estavam envolvidos com os livros de histórias, menos um menino. Quando se falava em leitura e escrita, ele saía de perto e ia fazer outra coisa. Aparentemente, não tinha interesse. Até o dia em que chegou uma enciclopédia de dinossauros. Nesse dia, o menino ficou absolutamente fascinado, agarrou a enciclopédia. Ele não tinha alma de ficcionista, ele tinha alma de cientista. Precisamos reconhecer essas diferenças. Ele não tinha vontade de aprender a ler para ler sozinho as histórias infantis. Mas ele tinha muita vontade de aprender a ler para classificar os dinossauros, saber de que época eram e o que faziam. Aprendeu a ler em dias. É uma mudança de gênero, mas foi também uma mudança de mundo para o garoto.

Variar os gêneros é importante, mas não é uma ideia mecânica. Quando introduzimos um gênero novo, é preciso ter um sentido para isso. Para ler poemas, tenho um foco, se vou ler histórias, tenho outro. O que os diferentes gêneros permitem é abrir o leque das possibilidades de leitura e oferecer o discurso escrito em suas diversas formas. Porque, na verdade, quando as crianças ouvem o adulto ler, não aprendem só o enredo, mas também sua linguagem, que não é igual a dos outros. A variedade tem de ser selecionada em função daquilo que a turma pode aprender, das diferenciações que os alunos já têm condições de fazer e que você se sente em condições de oferecer. 

Por que ainda é pequeno o acesso a materiais que favoreceriam, na produção de um texto, a busca de informações em diversas fontes?

Telma Há um medo mortal de trabalhar verdadeiramente com jornais porque se pensa que é um texto adulto. Isso não é verdade. Certa vez, vi uma professora fazer um trabalho muito interessante. Os meninos tinham de assistir o noticiário da TV e, no dia seguinte, ela levava o jornal impresso para a sala, para que encontrassem as informações sobre os fatos do dia anterior. Ler os títulos, o subtítulo da reportagem, uma parte inicial do texto é algo muito possível de fazer, especialmente quando se tem sensibilidade para escolher o quê. Você não vai, por exemplo, propor a leitura de uma reportagem sobre uma chacina. Mas pode ler sobre quem jogou no domingo, quem ganhou o campeonato ou a corrida. Quando alguém relata algo que viu, você pode perguntar se a turma deseja escutar a história contada no jornal impresso, mais detalhada. Eu sou uma defensora convicta da presença do jornal na sala de aula porque os fatos são a fonte da história. Nele, lemos sobre acontecimentos de países distantes. Com um mapa múndi na classe você aponta, por exemplo, onde ocorreu uma avalanche e aborda questões como o que é isso, por que acontece. Esse trabalho é fascinante.

Mas é preciso ter a inteligência das crianças em alta conta. Quando se espera mais, elas devolvem mais. Quando se espera pouco, elas devolvem um pouquinho. O fato de trabalhar no limiar superior faz com que avancem muito mais do que quando se pensa "elas não vão entender". É claro que sozinhas elas não entendem. Tudo isso vale para enciclopédias, jornais, textos de ficção, revistas. Mas é preciso fazer uma aposta alta. Não uma aposta cega, sem olhar se a turma está acompanhando. E, sim, a mais alta possível, ajustada àquilo que as crianças mostram que são capazes de pensar e fazer. 

O professor encontra dificuldades em dar atividades diferenciadas para os que já estão alfabéticos e também precisam avançar? Como agir nesses casos?

Telma Isso é o mais fácil. Os já alfabéticos podem ler, escrever, produzir textos, ser envolvidos em projetos mais complexos. Estes não são o problema. O problema são os que ainda não compreenderam o sistema. Às vezes, há alfabéticos que não são leitores. Nesse caso, é preciso construir situações que ajudem a desembaraçar a leitura, que não é algo que vem sozinho. Não é porque uma criança colocou todas as letras que ela já sai lendo. Poucas fazem isso. A maioria precisa construir uma prática de leitura para se soltar. Tenho uma experiência recente com uma que estava escrevendo silabicamente com valor sonoro. Quando ela já sabia todas as letras, foi possível pensar em trabalhar questões como "essa letra serve para escrever esse som, mas é só essa? Tem mais? Você poderia colocar outra no lugar?" Então, ela avançou rapidamente para uma escrita alfabética, cheia de erros de ortografia, mas alfabética. Mas dizia "eu não sei nada porque escrevo, mas não sei ler. Eu escrevo nessa letra e tudo o que eu vejo está escrito numa letra que eu não conheço". Então, fiz uma tira de correspondência, com as letras de forma e de imprensa. Todas as vezes que não conseguia reconhecer uma letra, o menino via na tira. Mas isso empacava a leitura. Quando ele terminava a segunda palavra, já não sabia mais sobre o que era o texto. Passei a propor que lesse desse jeito e, depois de destrinchar todo o texto, voltasse a estudá-lo para ler rápido, pois só se entende o que se lê quando se lê rápido. Sozinho, ele se treinou, voltou e disse: "Estou lendo tudo". E estava mesmo. Porque, na verdade, ele não tinha se soltado da ideia de que era necessário ler todas as letras. Na medida em que pedi para que avançasse além dessa leitura letra por letra, ele teve de usar as estratégias de leitura. Isso fez com que ganhasse velocidade e compreensão. Conforme passou a compreender o que lia, a vontade de ler cresceu e a leitura melhorou. Esse é um ciclo virtuoso.

Ainda persiste a ideia de que as crianças só podem ter contato com histórias curtinhas, nunca lidas em capítulos?

Telma Essa mania de que tudo tem de ser pequenininho é uma deturpação da concepção de criança e, principalmente, um desrespeito enorme. Porque ela senta na frente da TV, vê uma novela em 180 capítulos, lembra de todos os personagens, quem casou com quem, quem brigou com quem e o que vestia em tal dia. As crianças não têm problemas de memória, quem tem problemas de memória somos nós. Elas têm tudo fresquinho na cabeça. Minha experiência pessoal é a de escolher livros pela grossura, ao contrário do que alguns fazem. Eu sempre escolho os livros mais grossos porque, se a história for boa, não quero que ela acabe! Esse lugar do leitor que tem prazer na leitura é o que o professor teria de encarnar. Para elas, uma história pequena é pobre e chata. É claro que histórias grandes podem ser pobres e chatas. Mas elas adoram ouvir uma história grande em capítulos, contados um por dia e, no fim da leitura: "tchan tchan tchan tchan, agora aguardem o capitulo de amanhã! Quem que acha que elas não gostam nunca experimentou. Elas são muito mais inteligentes do que os adultos porque, nesse momento da vida, tudo está para ser aprendido e a disponibilidade para a aprendizagem é enorme. Quando perdem isso é porque os adultos destruíram. O fracasso reiterado mata essa disponibilidade. 

Como deve ser o trabalho do 3º ano em diante no que se refere ao aprimoramento da leitura e da escrita?

Telma Você já disse a palavra: aprimoramento. Em primeiro lugar, ninguém deveria chegar ao final da segunda série sem compreender o sistema de escrita e sem ler. Daí pra frente, todo o trabalho é de estabelecer objetivos cada vez mais complexos para a mesma coisa, que é ler e escrever. O nome do conteúdo não muda e, sim, o que está lá dentro. O que acontece é que muitos imaginam que, quando se é capaz de colocar todas as letras e ler alguma coisa, ainda que silabando, está encerrada a aprendizagem da leitura e da escrita. Uma prova de que isso não é verdade é que os meus alunos na pós-graduação estão aprendendo a ler textos acadêmicos, porque infelizmente as faculdades onde estudaram, em vez de deixá-los ler textos acadêmicos adequados à competência deles, criam as apostilas, simplificando o conteúdo, no pior sentido da palavra. Isso os impediu de construir a capacidade de ler textos de certo grau de complexidade, de um determinado gênero.
Aprende-se a ler e a escrever ao longo da vida toda. Não basta ser alfabético e ser capaz de ler um outdoor para ser alfabetizado. Quando entendemos isso, ajudamos os meninos a se aproximar de textos cada vez mais complexos. Esse trabalho os transforma em leitores cada vez melhores e de uma gama mais ampla de gêneros. E aprender por meio dos textos é condição para estudar os outros conteúdos na escola. Para quem não sabe aprender a partir de um texto escrito, o destino depois da quinta série é o fracasso.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Construindo saúde: a dimensão coletiva do sofrimento docente


"Na atualidade, com a efetivação da sociedade de controle e do capitalismo globalizado, no qual  o  mundo perde  a  nitidez  de  suas  fronteiras,  o  homem  contemporâneo  se  vê desterritorializado, ou seja, seus antigos territórios referenciais vão perdendo suas funções de estruturação  e  unificação.  O  homem contemporâneo  vive  num  mundo  cada  vez  mais competitivo  e  individualista,  com  quase  nenhuma permanência  de  vínculos  e  relações.
Assistimos às escolas adotando uma política de qualidade, com o objetivo de aproximá-las do funcionamento da empresa. Torna-se comum, no ambiente escolar, a valorização das técnicas de gerenciamento,  transformando  o  aluno  em  consumidor  de  ensino  e  o  professor  em funcionário treinado e competente. Ou seja, a escola vai aos poucos preparando mão-de-obra com  as  novas exigências  do  mercado  de  trabalho  e  tratando  o  ensino  público  como mercadoria,  trazendo  “no  bojo  o  tecnicismo  que  reduz  os  problemas  sociais  a  questões administrativas, esvaziando os campos social e político do debate educacional, transformando os problemas da educação em problemas do mercado e de técnicas de gerenciamento”, alerta Marrach (2000, p. 52).
Como construir saúde nestas circunstâncias? Como escapar da clausura do individualismo, que tanto nos faz sofrer por acreditarmos que há algo em nós que está errado e que precisa ser remediado? Como resistir aos tentáculos da racionalidade biomédica que, no exercício do biopoder, nos classifica como doentes? Que estratégias podemos sugerir aos professores neste combate à medicalização da vida?"

Leia esse artigo na íntegra clicando aqui


terça-feira, 20 de novembro de 2012

Dia da Consciência Humana

Caio Pereira*


Nos últimos dias circulou pelas redes sociais um vídeo em que o ator americano Morgan Freeman se diz contra datas comemorativas relacionadas à consciência negra. O motivo? Assim como não há o dia da consciência branca, não deveria haver o da consciência negra, pois a melhor forma de acabar com o racismo seria não falando sobre ele.
Esse é o tipo de pensamento base daqueles que são contra as cotas raciais, pois segundo eles, essa seria a maior forma de preconceito possível, atribuindo ao negro uma inferioridade às demais etnias.
Contudo, eu discordo. Continuo achando que a maior forma de racismo é escravizar um povo por conta do tom da sua pele e tratá-lo como mercadoria, castigá-lo com chibatadas. E, sinceramente, não acho que esquecer isso seja a solução. Nenhum problema é solucionado sendo ignorado.
A escravidão no Brasil deixou sequelas presentes até hoje na sociedade. Qual é o percentual de estudantes negros nas faculdades? Com certeza é muito baixo. Isso não significa que o negro seja intelectualmente inferior, mas representa o papel que exerce na pirâmide social.
Um jovem negro carece de exemplos de pessoas bem sucedidas que não sejam artistas ou desportistas. Nesse ponto estamos evoluindo. Nos últimos meses um negro ganhou notoriedade sem chutar uma bola, ou batucar um pandeiro. O ministro do Superior Tribunal Federal, Joaquim Barbosa.

O Relator do caso do Mensalão tomará posse da presidência do STF, sendo o primeiro negro a ocupar o cargo. Com uma trajetória de estudos no exterior, o filho de pedreiro, venceu na vida através dos estudos, sem precisar de cota. Porém o caso dele é uma exceção e uma história de superação, não podendo ser tomado como parâmetro.
Vejo as cotas raciais não só como uma forma de ressarcir os descendentes de escravos, que não receberam indenização por todos os crimes a eles cometidos. Por toda mão de obra utilizada, que enriqueceu diversas famílias tradicionais brasileiras, que hoje em dia podem pagar os melhores colégios para seus filhos. Mas como uma tentativa de igualar o processo e torná-lo mais justo.
As cotas não são um insulto, pois o insulto já aconteceu. Por isso tanto as cotas, quanto o dia da consciência negra, são válidos. A ideia não deve ser de revanchismo, mas não devemos esquecer essa parte chata da história, pois ela influencia a estrutura atual.
No fundo, todos somos iguais, indiscutivelmente. Mas infelizmente, no passado, não se tinha esse pensamento. E muitos ainda não têm. Por conta disso, hoje é muito mais que o Dia da Consciência Negra, é o dia da Consciência Humana!
Portanto, hoje é dia de lembrarmos as atrocidades cometidas contra os meus ancestrais, aos ancestrais desse Brasil. Mas sem se esquecer de exaltar aqueles que quebraram todas as barreiras impostas. Salve Marthin Luther King! Salve Malcom X! Salve Mandela! Salve Joaquim Barbosa! Salve Zumbi!


Fonte:http://extra.globo.com/noticias/seis-que-sabem/dia-da-consciencia-humana-6777792.html#ixzz2CmeDDS7N



Caio Pereira* é aluno do ensino médio do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro - ISERJ

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Crianças analfabetas na Etiópia aprendem sozinhos a hackear tablets



Certa vez alguém perguntou ao astrônomo e divulgador de ciências Neil deGrasse Tyson o que fazer para despertar a curiosidade científica nas crianças, e o conselho dele foi: “sair do caminho delas”, ou seja, deixá-las explorarem à vontade.
As crianças, segundo ele, já nascem cientistas, com curiosidade e vontade de explorar e conhecer.
O pessoal do “One Laptop Per Child” (“Um Laptop Por Criança” – OLPC) comprovou essa ideia na prática. A empresa de Nicholas Negroponte já distribuiu 3 milhões de laptops para crianças em 40 países, uma atividade que geralmente integra professores a alunos. Mas e onde não tem professor? E onde todo mundo é analfabeto?
A equipe do OLPC deixou uma caixa fechada com tablets Motorola Xoom em duas aldeias etíopes, Wonchi e Wolonchete, onde nunca havia caído ou passado nada escrito.
Eles ensinaram alguns adultos como usar os painéis solares que recarregam os tablets, e pronto. Largaram lá os aparelhos recheados de programas educativos, livros, filmes e jogos.


Uma vez por semana, eles apareciam nas aldeias para trocar o chip de memória dos tablets, onde estavam registradas as atividades das crianças, todas entre 4 e 8 anos. E o que os registros mostraram é bastante animador.
  • 4 minutos depois que a equipe saiu da aldeia, as crianças já haviam aberto as caixas e descoberto como ligar os tablets – eles nunca tinham visto um botão de liga/desliga antes;
  • uma semana depois, cada criança usava em média 47 aplicativos por dia;
  • duas semanas depois, eles estavam disputando quem soletrava o alfabeto mais rápido, e cantavam músicas como o abecê;
  • cinco meses depois, eles conseguiram ultrapassar a proteção do tablet, que não deixava personalizar o mesmo, e além de cada um ter um tablet completamente diferente, eles também conseguiram habilitar a câmera, que alguém tinha deixado desabilitada por engano – traduzindo, eles hackearam o tablet;
  • uma das crianças, que brincava com programas de alfabetização que usam imagens de animais, abriu um programa de desenho e escreveu a palavra “Lion” (leão);
  • o que uma criança descobria sobre os tablets era compartilhado rapidamente com todas as crianças. Elas formaram uma rede solidária de aprendizado espontaneamente.

Em cinco meses, a vila saiu da “idade da pedra” e se lançou no caminho da alfabetização e da informática. Imagine se cair um disco voador na Etiópia…

#DICA DE WILSON SANTANA

Educação transformal


sexta-feira, 9 de novembro de 2012

XV FoNEPe


DELEGAÇÃO DA PEDAGOGIA ISERJ

DELEGADA: BARBARA ASSIS DE OLIVEIRA
SUPLENTE: SUZANE MELLO DE ARAÚJO
ALUNA: CARLA BEATRIZ


segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Ser índio em tempos de mercadoria

Tarso de Melo*


A recente divulgação da carta que uma comunidade indígena Guarani-Kaiowá de Dourados (MS) enviou à Justiça Federal pedindo que, uma vez que não lhes é permitido viver da forma que consideram digna, seja logo decretada a morte de toda a comunidade, por cruel que pareça, não deveria causar espanto. Condenados à morte, sejamos sinceros, os índios brasileiros já estão há mais de 500 anos, mas a execução da sentença é lenta, torturante e cínica.

O que espanta, desta vez, é que os próprios Guarani-Kaiowá tenham pedido ao seu inimigo mais ou menos declarado – esta coisa que insistimos em tratar como “civilização” – que seja mais sincero. Sim, mais sincero e diga claramente que o índio não interessa, não se encaixa no modo de vida a que todos, sem privilégios (ouçam o eco iluminista…), estamos condenados.

Aprendemos com Marx que o capital libertou o trabalhador da escravidão à força, típica de formações econômicas pré-capitalistas, para submetê-lo a uma forma diversa de escravidão: o trabalho assalariado, a compra e venda da força de trabalho. (Sim, ainda há trabalho escravo – e ele não é incompatível com o capitalismo. Apenas não pode ser a regra, porque a valorização do capital depende de sua circulação também na forma de salário, o que não impede que um ou outro capitalista faça uso da extração violenta da força de trabalho.)

O trabalho como mercadoria é – em regra, insisto – o único compatível com uma sociedade em que tudo é mercadoria, em que o acesso aos bens indispensáveis à existência passa inescapavelmente pelo mercado: pagou, tem; não pagou, não tem. Ponto final. É óbvio, neste esquema rigoroso de trocas, que não se tolere qualquer exceção à lógica mercantil. Em outras palavras, o que o capitalismo não tolera é a manutenção, em seu mundo, do que não é mercadoria e, ainda por cima, impede o livre desenvolvimento de suas forças.

O que são, afinal, os índios para a ordem capitalista? Um ônus, um entrave, uma aberração, mas que, por não ser conveniente à “civilização” assim declará-los, recebem da nossa Constituição instrumentos para sua proteção que são constantemente “desmoralizados” (e é inevitável usar aqui esta palavra porque a proteção aos índios assume exatamente uma feição moral na ordem jurídica, ao mostrar como somos gratos e responsáveis com nossas, digamos, “origens”), como na decisão da Justiça Federal que exterminou, por enquanto, a paciência dos índios e sua esperança de viver no espaço que a “civilização” reservou àqueles que a antecederam. E sobreviveram à sua afirmação.

A carta à Justiça Federal não deixa dúvida: os Guarani-Kaiowá cansaram de reivindicar o direito de sobreviver como índios e não aceitam viver senão como índios. Não aceitam migrar para o regime do trabalho precário (prestado, no geral, a quem tomou suas terras) ou da mendicância às margens do exuberante mundo das mercadorias. O “bilhete suicida” que essa comunidade manda para nós, não o tomem como chantagem, “drama” etc. É um “basta”, um “chega”, mas principalmente uma prova de que os índios, com sua habitual sabedoria, entenderam melhor do capitalismo e de sua “civilização” do que nós, que nele estamos afundados até o pescoço – e um pouco mais.

Não só sua própria existência, mas a forma como os índios insistem em mantê-la é uma grande afronta ao capital e sua lógica. Vejam o que diz a carta: “Nós comunidades cultivamos o solo, produzimos a alimentação aqui mesmo, plantamos mandioca, milho, batata-doce, banana, mamão, feijão e criamos de animais domésticos, como galinhas e patos. Aqui agora não passamos fome mais. As nossas crianças e adolescentes são bem alimentadas e felizes, não estão pensando em prática de suicídio. Assim, há uma década, nesses 12 hectares estamos tentando sobreviver de formas saudáveis e felizes, resgatando o nosso modo de ser e viver Guarani-Kaiowá, toda a noite participando de nosso ritual religioso jeroky e guachire”. Como assim alimentadas, saudáveis e felizes? Sem ter pago por isso? Este intercâmbio do homem com seus iguais e com a natureza orientado apenas e tão-somente por suas necessidades – do espírito e do estômago – é inadmissível para o capital. Mais ainda: é sobre sua negação que se constituiu a forma como vivemos nos últimos 3 ou 4 séculos.

Os índios, neste contexto, são não apenas supérfluos, mas uma espécie de mau exemplo a ser apagado do horizonte de formas de “ser e viver” à venda – sim, à venda – em nosso tempo. O que será de uma sociedade “sem alternativas” se tolerar uma forma de vida que se nega à troca, ao dinheiro, à concentração da riqueza, ao desperdício? Desta vez, a pedido dos próprios índios, a “civilização” terá oportunidade de declarar o que pensa a este respeito.

A propósito, a Constituição brasileira afirma que “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (art. 231).

Se nossas autoridades, que têm sua função justificada por essa mesma Constituição, não se preocuparem em respeitar tais palavras, será muito difícil evitar que se confirmem a tragédia da carta dos índios e o pessimismo das linhas acima. Mas também será cada vez mais difícil – creio e espero – manter os grupos oprimidos e suas reivindicações dentro de comportados limites legais.



*Tarso de Melo (1976) é advogado, mestre e doutor em Direito pela FDUSP, professor da FACAMP e coordenador de pós-graduação da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. É um dos coordenadores da coleção Direitos e Lutas Sociais (Dobra/Outras Expressões).



http://editora.expressaopopular.com.br/noticia/batalha-das-ideias-ser-%C3%ADndio-em-tempos-de-mercadoria

domingo, 28 de outubro de 2012

TRIBUTOS

Claudia Marcia Santana Vaz



Grito verdades
Até a morte grito
Guerra mundial
Holocausto social
Estado fecal
Deus contextual
Crueldade
Mudo conceitos
Encontro lucidez
Convulsões
E preconceitos
Livre, sigo
Palavras
Duplos sentidos
Que louco sou eu?
Personagem real
Língua banal
Significo
Signo
Sem língua
Sem fala



sábado, 13 de outubro de 2012

Sobre pedras e passarinhos


Sobre pedras e passarinhos



Se você disser para um passarinho que ele nasceu para voar, provavelmente ele não ficará supreso. Com a delicadeza e polidez que só os passarinhos possuem, responderá que há anos já sabia disso, e que este fato – o de saber a quê veio ao mundo – o fazia bem.

Se disseres para uma pedra que sua função é a de permanecer parada e impermeável pela eternidade, conformada com o fato de que talvez – e apenas talvez – alguma chuva ou pé humano a troque de lugar, a reação será parecida. Provavelmente ela será um pouco dura, mas te dirá que já sabia disso. E que ela, assim como inúmeras outras criaturas, têm sua visível e eloquente missão. Que se sentem bem com tamanha obviedade, porque é mais seguro e sensato viver em um mundo onde as coisas fazem sentido.
 
[...]
 
Para continuar a ler visite o Blog da Milena

Os cinco estágios da carreira

Existem cinco estágios em uma carreira.

O primeiro estágio é aquele em que um funcionário precisa usar crachá, porque quase ninguém na empresa sabe o nome dele.
No segundo estágio, o funcionário começa a ficar conhecido dentro da empresa e seu sobrenome passa a ser o nome do departamento em que trabalha...
Por exemplo, "José" de contas a pagar.
No terceiro estágio, o funcionário passa a ser conhecido fora da empresa e o nome da empresa se transforma em sobrenome. José da usina tal.
No quarto estágio, é acrescentado um título hierárquico ao nome dele: José, Gerente da usina tal.
Finalmente, no quinto estágio, vem a distinção definitiva. Pessoas que mal conhecem o José passam a se referir a ele como 'o meu amigo José, Gerente da usina tal'.
Esse é o momento em que uma pessoa se torna, mesmo contra sua vontade, em 'amigo profissional'.
Existem algumas diferenças entre um amigo que é amigo e um amigo profissional.
Amigos que são amigos trocam sentimentos. Amigos profissionais trocam cartões de visita.
Uma amizade dura para sempre. Uma amizade profissional é uma relação de curto prazo e dura apenas enquanto um estiver sendo útil ao outro.
Amigos de verdade perguntam se podem ajudar. Amigos profissionais solicitam favores.
Amigos de verdade estão no coração. Amigos profissionais estão em uma planilha.
É bom ter uma penca de amigos profissionais. É isso que, hoje, chamamos networking, um círculo de relacionamentos puramente profissional.
Mas é bom não confundir uma coisa com a outra.
Amigos profissionais são necessários.
Amigos de verdade, indispensáveis.
Imagine você um dia descobrir que tinha bem mais amigos do seu cargo do que da sua pessoa!
Algum dia, e esse dia chega rápido, os únicos amigos com quem poderemos contar serão aqueles poucos que fizemos quando amizade era coisa de amadores.
Por isso preservem as amizades verdadeiras porque os amigos da tua posição desaparecerão, os amigos da sua pessoa permanecerão do teu lado.


____________Max Gehringer
 
#DICA WILSON SANTANA
 
 
 
 
 
Faz lembrar um velho ditado:
 
"Nessa vida os amigos que faremos caberão em apenas uma das mãos. São esses poucos verdadeiros quem carregarão o nosso caixão."

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Subvertendo paradigmas - Antonin Artaud

Mônica Vallim



Na medida em que se permite um mergulho na profundidade das obras de Antonin Artaud , a dualidade de tudo que existe vai aflorando de forma latente em seus escritos, inquietando o espírito do leitor espectador, questionando a racionalidade imposta pelo conhecimento científico e pelo positivismo. Determinadas cartas ao seu médico ferem a alma ao descrever o sofrimento de um homem sensível e inteligente que sente o seu direito de Homo sapiens ser usurpado. Sente-se esvaziado do seu ser pelo tratamento médico recebido no Hospital Psiquiátrico de Rodez . Escrever torna-se a ferramenta encontrada por Artaud para manter-se lúcido e questionar a sociedade.

Algumas vezes a sua linguagem parece um enigma atroz a ser desvendado em meio ao turbilhão de sentimentos e de blasfêmias oriundos do horror que sentia com as sensações de esquecimento provocadas pelo tratamento psiquiátrico vigente àquela época, a sismoterapia. Em outras parece tão óbvia desnudando a crueldade do estigma de um louco que por meio de suas cartas reinventou o teatro, a si mesmo e a psiquiatria. Apesar das várias sessões de eletrochoque, conseguiu manter a sua louca lucidez e rompendo com o teatro de sua época, recriou-o psicologicamente marginal, da forma como o conhecemos hoje, despojado do formato de mero entretenimento literal.

O teatro artaudiano teve o expurgado propósito de romper padrões, para tocar subjetivamente o puro e atingir o imutável universo cósmico subvertendo o mundo ao fazer o espírito sangrar na união corpórea em cena, no palco. Assim, mesmo estando internado em um sanatório, ele cria o projeto de um novo teatro psicologicamente reflexivo incorporado de angústias sociais, tormentos humanos, revelações e revoluciona culturalmente a sua época com a obra “O teatro e seu duplo”. Para Artaud o teatro é a sua vida, e a sua vida é o seu laboratório de ensaios.

Um teatro em constante movimento etéreo, corporal e ambíguo aos extremos, que contempla múltiplas linguagens. Algo essencialmente psíquico, mágico e subversivamente perturbador. A linguagem escrita deixa de ser a protagonista do espetáculo. A linguagem cênica assume seu papel cerimonial. Por meio de gritos, gestos e atitudes novos signos são criados para pontuar essa teatralidade corpórea. Essa nova linguagem visceral e obscura transmuta-se adquirindo o valor das palavras. “O corpo sem órgãos”.



O legado de seus registros  tanto para as artes cênicas quanto para a literatura e a psiquiatria transpõe o seu tempo, o século das grandes guerras. A sensação é que Antonin Artaud utilizou-se desse estado psíquico de demência para experimentar a liberdade derradeira da criação atemporal. Recriando-se no teatro recriou-se na vida, mantendo sua mente ativamente buscando autocuras. E independente das consequências, ele realmente ousou buscá-las. A única maneira de sobreviver e transpor seus conflitos existenciais foi pensar à frente de seu tempo. Aprende a renascer eternamente a partir do caos e do devir, juntando as várias linguagens da arte como em um ritual.

Reler as cartas de Artaud é perceber a subjetividade na crise existencial do desespero de um homem que passou por duas guerras mundiais vivenciando a Europa ser destruída. Mesmo internado por muitos anos em sanatórios, produziu um acervo riquíssimo que permite reconhecê-lo nos grandiosos espetáculos teatrais contemporâneos e na antipsiquiatria. Sua obra surgiu com o firme propósito de impactar a sociedade, romper paradigmas a qualquer custo. Sua produção textual não poderá jamais ser rotulada como insana ou superficial.

Sendo assim, o tributo de Antonin Artaud às artes cênicas e à ciência psiquiátrica ainda se perpetuará por muitos anos. Suas ideias foram muito além do que se pressupõe racionalmente estabelecido como certo ou errado, bom ou mau, profano ou sagrado. Para compreender o pensamento artaudiano, deve-se partir da premissa que toda existência no plano físico ou psíquico existe inata e coadunada ao seu duplo antagônico na metafísica cruel.


Leia outros resumos ou consulte a bibliografia disponível em arquivo PDF clicando em:
 O TEATRO E SEU DUPLO

O grupo, coordenado pelo Professor Marcio Sales, se reúne às quintas-feiras no Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro, sala 222, das 16h às 18h. Rua Mariz e Barros 273, Praça da Bandeira.
Basta comparecer.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Tombamento do Centro Cultural Indígena - Aldeia Maracanã

Todas as nossas forças na aprovação dessa lei

O respeito aos povos indígenas do país é um pilar da democracia brasileira. Com o intuito de fincar ainda mais essa bandeira na cidade do Rio de Janeiro, os vereadores Reimont (PT) e Eliomar Coelho (PSOL) apresentaram à Câmara do Rio o Projeto de Lei nº 1536/2012, que dispõe sobre o tombamento do Centro Cultural indígena da Aldeia Maracanã, no antigo Museu do Índio, situado à Rua Mata Machado, 127, Maracanã.

Segundo a proposta, o prédio, tombado por seu relevante valor arquitetônico, histórico e cultural, será destinado ao usufruto exclusivo da Cultura Indígena, promovendo assim a preservação dos costumes, crenças e tradições destes povos. A lei ainda obriga o Poder Executivo a realizar a inscrição deste tombamento no Livro de Tombos dos Bens Culturais do Município, tal como consta no Registro Geral de Imóveis (RGI) e nos livros de Saberes e Lugares no prazo de quinze após a publicação desta Lei, se a mesma for aprovada.

"O tombamento tem seu fundamento não apenas em sua preservação, tendo em vista o precário estado de conservação, mas ajudará no trabalho de revitalização da própria área em que se insere o imóvel", justifica Eliomar Coelho, um dos autores do projeto. "Sua importância também se deve ao fato de ser o Centro Cultural Indígena da Aldeia Maracanã uma referência centenária para a população indígena da cidade do Rio de Janeiro, desde as expedições de Rondon, e posteriormente por abrigar o Museu do Índio", finaliza o vereador Reimont, também autor da matéria.


Fonte: http://www.camara.rj.gov.br/noticias_avisos_detalhes.php?m1=comunicacao&m2=notavisos&id_noticia=4813

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Uma lenda indígena: Os dois lobos




“Uma noite, um velho índio falou ao seu neto sobre o combate que acontece dentro das pessoas.


Ele disse:

– A batalha é entre os dois lobos que vivem dentro de todos nós. Um é Mau. É a raiva, inveja, ciúme, tristeza, desgosto, cobiça, arrogância, pena de si mesmo, culpa, ressentimento, inferioridade, mentiras, orgulho falso, superioridade e ego.

O outro é Bom. É alegria, fraternidade, paz, esperança, serenidade, humildade, benevolência, empatia, generosidade, verdade, compaixão e fé.

O neto pensou nessa luta e perguntou ao avô:

– Qual lobo vence?

O velho índio respondeu:

– Aquele que você alimenta!”

domingo, 30 de setembro de 2012

Ensino Religioso

Stela Guedes Caputo: “acho que não podemos ter Ensino Religioso como disciplina.”

Além de ser o espaço para partilhar conhecimentos, a escola deveria ser um ambiente para a discussão de valores e atitudes que possibilitassem a convivência entre as pessoas. Ou seja, não espera-se, em princípio, que o ambiente educacional seja marcado pelo preconceito e pela discriminação. Pelo menos, não deveria ser assim.

Mas, não foi a essa conclusão que a professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e jornalista Stela Guedes Caputo chegou, ao acompanhar, durante 20 anos, jovens e crianças adeptos da religião do Candomblé. Segundo ela, nas entrevistas que fez com estudantes candomblecistas, uma das constatações mais tristes foi a de que, para eles, de todos os espaços sociais onde a discriminação acontece, a escola é o pior de todos.

“Uma das professoras de Ensino Religioso que entrevistei, por exemplo, disse que tinha oito alunos do candomblé que entenderam, a partir de suas aulas, que estavam errados e se tornaram cristãos”, relembra Stela, ao contar uma das inúmeras histórias de discriminação que ouviu nas duas décadas de pesquisa que fundamentam o livro “Educação nos terreiros - e como a escola se relaciona com crianças de Candomblé”, publicado pela Editora Pallas.

A obra já foi recomendada pela Revista de História da Biblioteca Nacional, está na sala virtual da formação permanente para professores de História do Estado e foi indicada para ajudar a discussão sobre diversidade com ênfase nas questões da história e culturas africanas. Também foi lançada este ano em escolas, espaços culturais e em terreiros no Rio, na Bahia e em Minas, e tem lançamento previsto em Pernambuco e em vários outros estados.

Nesta entrevista, ela aborda não só o tema central de seu livro, a educação nos terreiros, como apresenta problemas e incoerências do ensino religioso, fala sobre outras formas de preconceito que existem no ambiente escolar, destaca de que forma o trabalho com a religião poderia contribuir com a formação educacional, entre outros temas.

FOLHA DIRIGIDA — Uma de suas conclusões é de que há muito preconceito nas escolas contra crianças e jovens desta religião. De que forma este preconceito se manifesta?

Stela G. Caputo - Primeiro é importante dizer que todos os tipos de preconceitos identificados foram relatados por crianças e jovens de terreiros que entrevistei durante minhas pesquisas. Também identifiquei discriminações nas entrevistas realizadas com professores e professoras da rede pública. Preconceitos e discriminações ocorrem de formas variadas. Um dos primeiros relatos que me chamou a atenção foi o de Ricardo Nery, quando ele tinha 4 anos, portanto, isso foi há 20 anos. Ricardo é ogan, ou seja, ele toca atabaques, entre outras funções. Na época o menino me disse que havia sido chamado de “filho do Diabo” por uma professora. Foi justamente esse relato que me motivou a tentar perceber como a escola se relaciona com crianças de terreiros. Jovens de terreiros amam e se orgulham de sua religião, mas, em geral, na escola, ocultam sua fé e até dizem que são católicos. Isso acontece porque preferem se tornar invisíveis para não serem identificados como candomblecistas e, assim, diminuírem as discriminações por que passam. Muitas fazem o santo e precisam raspar a cabeça. Esse é um momento de conflito dramático com a escola e crianças e jovens preferem dizer que estão com câncer ou pegaram piolho para justificar a raspagem. Há uma tática nova agora. Muitas dizem que passaram um produto para alisar o cabelo, o que acabou causando a queda, enfim, o que importa é perceber que elas sofrem porque são discriminadas e inventam formas de sobreviver ao preconceito.


O que pode nos dizer do relacionamento das crianças e jovens de famílias praticantes do candomblé com os estudantes de outras religiões?

Depois de tanto tempo de pesquisa eu tenho uma infinidades de dúvidas e algumas poucas certezas. Mas uma das coisas mais preciosas que aprendi sobre o candomblé é que esta é uma religião que não discrimina. Não discrimina diferentes orientações sexuais, não discrimina raças, classes, gêneros. Não discrimina outros credos. O candomblé também não é uma religião de conversão, não procura convencer ninguém a ser candomblecista. Não acha sua religião superior a de ninguém, apenas ama sua religião e vive ou tenta viver de acordo com ela. Então muitas vezes se ninguém perguntar, o candomblecista nem diz que é candomblecista. Primeiro por conta disso que já falei. Segundo por se tratar de uma religião de awos, ou seja, de segredos rituais (o que não pode ser confundido com silenciamento). O praticante não sai por aí falando de sua religião. Pensando na sua pergunta eu vejo não há problema para o candomblecista se relacionar com estudantes de qualquer religião. Não será ele ou ela candomblecista a criar problema para os outros. São os outros que criam problemas para os estudantes candomblecistas quando supõem que suas formas de entender e perceber o mundo são superiores, são melhores que as dos praticantes de candomblé.


Os alunos também sofrem preconceito por parte dos professores?

Um dado importante e muito triste levantado nas pesquisas é que alunos e alunas candomblecistas são unânimes ao afirmarem que de todos os espaços sociais onde a discriminação acontece, a escola é o pior deles. Uma das professoras de Ensino Religioso que entrevistei, por exemplo, disse que tinha oito alunos do candomblé que entenderam, a partir de suas aulas, que estavam errados e se tornaram cristãos. Muitas escolas rezam o Pai-Nosso na hora da entrada. Isso é uma forma de discriminar religiões para as quais essa oração não faz o menor sentido, por exemplo, para alunos judeus. Não se trata só do candomblé. Tauana dos Santos, a menina da capa do meu livro, afirma lamentavelmente que se dependesse das escolas em que estudou continuaria com vergonha não só do candomblé, religião que ama, mas também com vergonha de ser negra. Mas é claro que a escola não é “uma coisa só”. Existem muitos esforços de professoras e professores que defendem e praticam uma educação que garanta e respeite as diferenças. Ainda bem que existem, mas o problema é que geralmente são esforços individuais de um ou outro professor preocupado em combater os preconceitos enquanto o obscurantismo vem crescendo organizadamente.


Este livro é resultado de uma longa pesquisa. Pode nos falar sobre como realizou este estudo?

Em 1992 eu era repórter do jornal O Dia e recebi uma pauta para fazer um levantamento sobre o candomblé na Baixada Fluminense. Interessava ao meu editor uma matéria sobre a resistência dos terreiros. Cheguei ao Ile Omo Oya Legi, de Mãe Palmira de Iansã, em Mesquita, na Baixada Fluminense e a primeira pessoa que vi foi Ricardo Nery, com 4 anos, batendo um atabaque. A pauta da reportagem mudou e publicamos uma matéria revelando como crianças e adolescentes se preparam para a religião. Percebi que elas possuem um imenso conhecimento sobre o yorubá, uma língua africana, elas também conhecem mitos, danças, rituais, conhecem os usos diferenciados das folhas e ervas. Ao mesmo tempo, percebi que crianças e jovens respeitam muito os mais velhos no terreiro, mas são igualmente respeitadas por estes. Ou seja, o terreiro inverte a lógica adultocêntrica que opera na sociedade de maneira geral e particularmente nas escolas. A matéria agradou bastante às comunidades de terreiros, mas o bispo Macedo comprou as imagens que fizemos no Jornal O Dia (as fotos passam a pertencer às agências dos jornais) e publicou na Folha Universal uma matéria pejorativa sobre as mesmas crianças. Também publicou um livro com igual conteúdo discriminador. Esse episódio, somado aos depoimentos de Ricardo Nery, que foi chamado na escola de “filho do Diabo”, me fez desejar pesquisar na área da educação que é onde localizo um espaço fundamental para discutir as diferenças e as discriminações. Fiz então mestrado, doutorado na PUC e pós-doutorado na UERJ sempre pensando sobre essas questões. Esperei 20 anos para ver como um grupo de crianças crescia no candomblé. Fiz várias entrevistas, observei rituais, entrevistei professores, fotografei. Ao mesmo tempo, fui mergulhando em bibliografias sobre o candomblé de forma geral. Sobre crianças no candomblé não havia nada escrito, esse é o primeiro livro sobre a iniciação de crianças e o primeiro a tratar dessa religião na área da educação.


Nessas escolas, a senhora notou outras formas de preconceito? Contra negros, por exemplo?

É importante reforçar que estou sempre falando a partir dos depoimentos de crianças e jovens e são elas que associam o preconceito religioso ao preconceito racial. Todas as crianças negras, meninos ou meninas são enfáticos quando dizem que são discriminados conjuntamente, eles têm plena consciência disso. Há uma jovem que diz, por exemplo, que ouvia na escola: “é negra, só podia ser do candomblé!”. Aqui o candomblé e a raça são apontados como insultos e um associado ao outro. A abordagem que o pesquisador Antônio Sérgio Guimarães faz sobre insultos raciais, no livro “Classes, Raças e Democracia”, é importante. Ele diz que são atos, observações ou gestos que expressam opiniões negativas sobre uma pessoa ou grupo. Este autor pesquisou, de maio de 1997 a abril de 1998, as queixas registradas na Delegacia de Crimes Raciais de São Paulo. Nesse período, observou que em 82% dos casos, as vítimas fizeram questão de registrar os insultos verbais sofridos. Há registros de insultos como “fedido”, “nojento”, “sujo” e, também sobre a religião. O termo “macumbeiro” aparece registrado como insulto. Na escola existe a mesma lógica. Uma aluna negra ou aluno negro quando é insultado é chamado muitas vezes de “negro, sujo e macumbeiro”. Há vários relatos de pais de crianças que passaram a vida ouvindo “é negra, só pode ser ladra, cuidado!” São relatos que infelizmente revelam que não vivemos em uma democracia racial. Pelo contrário, o Brasil é um país racista e o racismo está presente na escola.


Muitas pessoas são contrárias ao Ensino Religioso porque consideram que a escola deve ser um espaço laico. Concorda com esta tese?

Concordo sim. Acho que a educação pública deve ser laica, mas, desde a chegada dos jesuítas, nossa escolarização foi marcada por objetivos de catequese e até hoje não temos uma educação de fato laica. A proclamação da República, em 1889, separa Estado e Igreja Católica, mas só a Constituição de 1891 garante o ensino laico nas escolas públicas. A atual Constituição, de 1988, não instituiu qualquer religião como oficial do Estado, mas, em seu artigo 210, garante a obrigatoriedade do Ensino Religioso, o que é uma contradição. É importante ressaltar que esse equívoco de confundir a fé privada com o espaço público não é exclusividade do Ensino Religioso, ele reforça isso, mas muitos professores e professoras de diversas disciplinas acham que a escola pública deve ser usada para conversão de alunos, o que é um absurdo imenso que deve ser combatido, proibido e discutido profundamente nos cursos de formação de professores.


A senhora acompanha a questão do Ensino Religioso nas escolas? Tem visto problemas?

Acompanho e tenho visto muitos problemas. No caso do Rio de Janeiro, por exemplo, em 2004, houve concurso público para professores de religião e 500 professores foram contratados, sendo 68,2% católicos, 26,31% evangélicos e 5,26% de outras religiões. É o que se chama de modalidade confessional. Na Coordenação de Ensino Religioso informam não há proselitismo, ou seja, não há catequeses e sim “valores”. Mas na prática não é o que acontece. Os depoimentos revelam que em muitas escolas se reza o Pai-Nosso. A Igreja Católica lançou uma coleção de livros didáticos católicos em 2007. Professores afirmam que selecionam o que há de comum entre católicos e evangélicos e planejam assim suas aulas, convertem alunos como já disse aqui. A Secretaria de Educação não realiza encontros periódicos para avaliar problemas de matemática, de história ou de química, por exemplo, e traçar projetos de solução. Mas faz encontros sistemáticos com os professores de religião e organiza, principalmente, a inserção da Campanha da Fraternidade de cada ano nas escolas públicas. Isso devia ser crime porque é evidente que fere a laicidade, que privilegia grupos hegemônicos, portanto, é evidente que é inconstitucional. Na Bahia, professores de qualquer disciplina completam carga horária com Ensino Religioso, enfim, há problemas por todos os lados. É por isso que defendo uma Proposta de Emenda Constitucional para que a obrigatoriedade do Ensino Religioso seja retirada da Constituição Federal.


Então a religião deve ser proibida na escola?

Acho que não podemos ter Ensino Religioso como disciplina. Também acho que o calendário escolar, os murais, os painéis não devem ser hegemonizados pela religião católica como, na verdade, são. Significa dizer que as diferentes religiões não podem entrar na escola? Não, não significa. Conheci um garotinho Wicca na passeata pela Liberdade Religiosa, no dia 16 de setembro. Eu nem sabia o que era isso e perguntei. É uma religião neopagã, iniciática, sacerdotal, mítica, politeísta, de culto dualista e orientação matrifocal. Praticam Sabás e Esbás. Que professor de Ensino Religioso estará capacitado a ensinar a história de todas as religiões? Isso não existe. Ainda que concordássemos com uma disciplina de História das Religiões, como alguns defendem, muitas seriam excluídas porque é impossível calcular a multiplicidade de significações humanas para a vida e a morte. Acho que esse garotinho Wicca pode entrar com o que o identifica. O menino judeu também. O católico, a evangélica, o candomblecista, a kardecista e todas as multiplicidades podem entrar na escola. Lidar com essa diferença é primeiro reconhecer que ela existe. Depois? É abraçá-la e dançar com ela, aprender e ensinar com ela. É ouvir do menino Wicca como foi seu fim de semana e pedir que ele explique o que é um Sabá. Pedir ao candomblecista que explique o que é um ebó. Para isso não precisamos de uma disciplina, mas precisamos entender que tudo isso são saberes e significações que penetram na escola, nos desenhos em cadernos. Na música que se canta baixinho e escondido. Na carteira que vira um atabaque em mãozinhas silenciosas que repetem um toque do terreiro. Ao invés de reprimir, que tal se pedirmos: “Ricardo, Patryck, João! Ensina esse toque para a turma. Diz para nós o que significa!” O professor de química pode fazer isso, todos podem.


Que contribuições para a formação educacional e humana de um estudante o trabalho com as religiões, no ambiente escolar, poderia trazer?

A opção religiosa, o modo como se percebe e significa o mundo é uma escolha íntima, singular. Nenhuma escola deve se intrometer nisso, a não ser garantindo a liberdade para que escolhas sejam feitas. Professores e professoras enfrentam muitos desafios no cotidiano das escolas. São baixos salários, plano de carreiras deficientes, precarização dos espaços escolares e da própria formação docente. Lidar com as diferenças na escola é mais um gigantesco desafio. E são múltiplas essas diferenças, inclusive a religiosa. A formação educacional e humana é uma coisa só. A educação só acontece entre seres humanos. É claro que todos os espaços religiosos ensinam, mas, como educadores, devemos perguntar o que se ensina? Se uma religião ensina a ser racista, homofóbico, machista e a discriminar outras religiões penso que esta religião está no campo oposto da educação libertária, igualitária e multicultural na qual acredito. Estou convencida de que ensinar a não ser racista, a não ser homofóbico, a não discriminar famílias constituídas pelas diversas orientações sexuais, a não ser machista é fundamental. Se uma atitude discriminadora acontece na sala de aula, discutir essa atitude é mais importante do que o conteúdo a ser dado. Se a atitude discriminadora foi causada por motivação religiosa podemos conversar porque uma religião ensina a discriminar. É essa discussão que colabora com a educação que respeita as diferenças. Nenhuma equação, fórmula, verbo ou oração subordinada é mais importante do que isso.


Como a senhora acha que seu livro ajuda nessa discussão?

Tenho recebido de todo Brasil muitas mensagens de crianças e jovens de candomblé dizendo que se reconhecem no livro. Muitos adultos se emocionam porque ali também enxergam sua história e só isso já me deixa extremamente feliz. Ao mesmo tempo, professores e professoras também escrevem dizendo poxa isso acontece na minha escola e me chamam para discutir e isso também em todo o Brasil. Eu não esperava tanta repercussão, mas queria poder contribuir e penso que isso vem acontecendo. Só gostaria de dizer que são as crianças e jovens que estão no livro, com suas histórias de vida, que estão causando esse movimento todo.
 
#DICA DE WILSON SANTANA